O que falar sobre fé?
Iniciemos por seu significado subjetivo, que povoa o inconsciente coletivo enquanto inabalável capacidade de se fazer o que quiser (a fé inabalável vence todos os obstáculos). A estrofe do cantor e compositor Gilberto Gil, “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá”[1], sintetiza esse sentimento. Para os dicionários, o substantivo feminino representa um sentimento de crença em algo ou alguém, ainda que sem evidência que comprove a veracidade da proposição em causa. Fé pode identificar ainda um estado emocional, às vezes alheio à vontade própria, pois tanto pode originar-se na herança dos antepassados, como ser incorporada como um hábito que se transforma em convicção.
Seja pelo hábito, seja pela herdade ancestral, esse estado emocional carece de um exame dos fatos ou qualquer ponderação crítica, tornando-se confiança absoluta em alguém ou algo sem qualquer lógica racional. Esse tipo de fé, adotado há séculos por diversas linhas religiosas, quer incutir suas regras como mantras de verdade absoluta. Evita perguntas, pois não possuem maturidade espiritual ou moral para oferecer respostas. Por isso é denominada fé cega. Ela “… aceita, sem verificação, o verdadeiro como o falso, e a cada passo se choca com a evidência e a razão. Levada ao excesso, produz o fanatismo”[2]. Kardec vai além: “Cada religião pretende ter a posse exclusiva da verdade; preconizar alguém a fé cega sobre um ponto de crença é confessar-se impotente para demonstrar que está com a razão”.[3]
A Doutrina Espírita alia a fé inabalável (confiança absoluta ou crença) à razão (observação a partir da vivência, do experimento e da ciência), denominando-a fé raciocinada. Ela não se confunde com a simples crença (fé cega) porque estimula (através da filosofia) a análise das questões fundamentais da vida humana para buscar um viver mais saudável. “A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. Eis porque não se dobra. Fé inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão em todas as épocas da humanidade”, segue a explicação Kardecista.
A compreensão dessa fé raciocinada depende de dois aspectos importantes. O primeiro está diretamente ligado aos hábitos da fé cega, seja por arraigarem-se culturalmente, seja por imposição dos líderes religiosos que a aplicam para praticar o bem-próprio. O segundo diz da capacidade de acreditar que a vida presente é um fragmento da trajetória imortal do Espírito. Mais ainda: que fé e razão não podem estar lado a lado porque seriam antagônicas, entre si. O “desconhecido” proposto pelo Espiritismo, em verdade, só parece incompreensível àqueles que não se debruçam sobre o tema para estudá-lo. Há ainda os que não dispõem de conhecimento suficiente para tal, rejeitando qualquer teoria nesse sentido. Estes são um prato cheio para os racionalistas, que apregoam o antagonismo entre fé e razão, como se a existência de uma não viabilizasse a outra.
A Doutrina Espírita concilia as duas ideias nos justos termos. A fé raciocinada, como preconizado por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos, não se confunde com a simples crença, pois também estimula (através da filosofia) a análise das questões fundamentais da vida humana para buscar um viver mais saudável. Em carta aos Hebreus (11:1), Paulo afirma que “a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se veem”. Ou seja, apoia-se no desejo de um mundo melhor (as coisas que se esperam) e a comprovação daquilo que vai além da matéria.
Artigo da Revista Espírita de fevereiro de 1867,[4] faz o caminho inverso ao dos racionalistas: “Toda a doutrina está nestas palavras; a profissão de fé é clara e categórica. Assim, porque Deus não pode ser demonstrado por uma equação algébrica e a alma não é perceptível com o auxílio de um reativo, é absurdo crer em Deus e na alma. Todo discípulo da Ciência deve, pois, ser ateu e materialista. Mas, para não sair da materialidade, a Ciência é sempre infalível em suas demonstrações? Não a vimos tantas vezes dar como verdades o que mais tarde foi reconhecido como erro, e vice-versa? Não foi em nome da Ciência que o sistema de Fulton foi declarado uma quimera? Antes de se conhecer a lei da gravitação, não demonstrou ela cientificamente que não podia haver antípodas? Antes de conhecer a de eletricidade, ela não demonstrou por a + b que não existia velocidade capaz de transmitir um telegrama a quinhentas léguas em alguns minutos?”.
A convicção é segurança interior, é ter-se uma fé raciocinada não transmitida, senão formada com o tempo, através da observação, do estudo, da crítica e da meditação. O estudo da Doutrina, respeitadas as limitações de cada indivíduo, é capaz de fornecer todas as respostas às principais dúvidas relativas ao tema, fornecendo-lhe elementos para que tire as próprias conclusões e dando diretrizes que o conduzam em sua jornada. Como ensina Emmanuel, no livro Cinquenta Anos Depois[5], enquanto o corpo acompanha faixas etárias, o Espírito só é separado por almas mais jovens, no raciocínio, ou profundamente enriquecidas no campo das experiências humanas. Não se culpa um homem por não ter fé, ou obriga-o a tê-la. “A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. Eis por que não se dobra. Fé inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão em todas as épocas da humanidade”.[6]
Vanda Mendonça
[1] Trecho da música Andar Com Fé eu Vou, de autoria de Gilberto Gil;
[2] O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIX;
[3] Idem;
[4] https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/901/revista-espirita-jornal-de-estudos-psicologicos-1867/6052/fevereiro/livre-pensamento-e-livre-consciencia
[5] Do livro Cinquenta Anos depois: episódios da História do Cristianismo no século II. Espírito Emmanuel. 32a ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004. Psicografado por Francisco cândido Xavier- pt. 1, cap. 2
[6] O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIX, item 7, pág. 187 – 365ª edição; Instituto de Difusão Espírite (IDE)