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Segundo o dicionário, o verbo pertencer significa “fazer parte” ou “ser parte”, indicando que integramos um grupo de pessoas, ou que nascemos em determinado local. Também significa “ser propriedade de”, ao indicar a posse direta de objetos (o livro me pertence).

Esse verbo está diretamente ligado ao uso dos pronomes possessivos, principalmente quando aponta a propriedade propriamente dita (o livro é meu). Também pode indicar um laço que nos une (Laura é minha irmã), e neste caso, não indica uma posse real, pois as pessoas não pertencem umas às outras.

Sob a ótica da Doutrina Espírita, o pertencimento tem um espectro bem mais amplo. Bens materiais, dotes físicos, artísticos ou intelectuais são ferramentas concedidas por empréstimo para o cumprimento da nossa jornada encarnatória, assim como a definição do local de nascimento e da família à qual incorporaremos.

Embora os Espíritos encarnados em uma mesma família estejam unidos por relações anteriores, nem sempre a consanguinidade garante que seus integrantes tenham um convívio harmonioso. Pode ocorrer que também sejam estranhos uns aos outros, “… divididos por antipatias igualmente anteriores, que também se traduzem em seu antagonismo na Terra, servindo-lhes de provação”[1].

Em verdade, nossa verdadeira família é a espiritual e não está circunscrita a um único processo encarnatório: “Os verdadeiros laços de família não são, pois, o de consanguinidade, mas os de simpatia e comunhão de pensamentos que unem os Espíritos, antes, durante e depois de sua encarnação”[2].

Isso explica as afinidades que sentimos por pessoas alheias ao núcleo familiar, a ponto de as considerarmos mais próximas que os consanguíneos. Isso ocorre devido a identificação desse laço espiritual, nem sempre percebido em relação aos nossos familiares do convívio carnal. Jesus exemplificou o conceito de família ao afirmar que a Sua não se restringia a Maria, sua mãe, ou aos irmãos, mas aos que com ele seguiam os preceitos do Pai.

O verdadeiro pertencimento familiar não nos vincula à posse. Esses Espíritos não nos pertencem, e tampouco nós a eles pertencemos. Registramos, sim, uma afinidade que transcende a matéria, porque deriva de laços mais profundos – possivelmente, de entes que já se relacionam a partir de uma família espiritual. Nestes casos, mesmo quando as ligações não são de sangue, esses Espíritos se encontram e logo percebem os vínculos afetivos de longa data. Daí a expressão “parece que nos conhecemos de outras vidas”. Esses Espíritos se reencontram no mundo Espiritual e permanecem ligados porque são a verdadeira família à qual pertencem, na verdadeira Pátria.

A justificativa fica clara, quando Kardec afirma que “Os laços de sangue não estabelecem necessariamente os laços entre os Espíritos. O corpo procede do corpo, mas o Espírito não procede de Espírito, porque o Espírito existia antes da formação do corpo. Não é o pai quem cria o Espírito de seu filho. Ele só lhe fornece um envoltório corporal, mas deve ajudar em seu desenvolvimento intelectual e moral, para fazê-lo progredir”[3].

A finitude física não dissipa os males provocados pelo Espírito encarnado; quando volta ao Plano Espiritual, ao deixar a Terra, “…leva consigo paixões ou virtudes inerentes à sua natureza, e vai ao espaço aperfeiçoando-se ou ficando estacionário até que queira ver a luz. Alguns partem, pois, levando consigo fortes ódios e desejos insaciados de vingança […][4].

          Após um longo período de orações e meditações, esse Espírito pode avaliar não apenas o mal praticado, mas quais oportunidades tem para redimir-se, reencarnando em um corpo preparado para nascer na família de seus desafetos. Qual será, então, sua conduta nessa família? Dependerá da maior ou menor resistência às boas decisões para o cumprimento desse percurso.

“O incessante contato com os seres que odiou é uma prova tolerável, sob a qual ele às vezes sucumbe, se sua vontade não é suficientemente forte. Assim, conforme seja levado pela boa ou pela má resolução, ele será amigo ou inimigo daqueles dentre os quais foi chamado a viver. Por aí se explicam estes ódios, estas repulsas instintivas que se notam em certos filhos, e que nenhum ato anterior parece justificar. Com efeito, nada nessa existência poderia ter provocado essa antipatia. Para dar conta disso é preciso voltar o olhar para o passado’’[5].

Podemos, desde já, agradecer pela família que nos abriga a cada nova encarnação, lembrando que nossa família espiritual permanece unida para nos receber após cada jornada. O pertencimento familiar, na Terra, é decisão pautada nas atitudes boas ou ruins que trazemos do passado. Muitos de nós, nos momentos de angústia, questionamos se podemos abdicar dessa carga recebida, pois não conseguimos vislumbrar uma explicação lógica para os desacertos domésticos.

Mas quando abrimos mão dessa condição que nos trouxe à vida (discutindo ou até afastando-nos dos familiares, por exemplo), acrescentamos numerário ao débito já existente com aqueles com os quais decidimos conviver. Nosso crescimento espiritual nos experimenta nas dificuldades da vida terrena, e vencemos quando as abraçamos com amor e caridade, pela responsabilidade adquirida antes da encarnação. Cientes de que a carga recebida é nossa (porque a provocamos), e nunca superior àquela que conseguimos suportar.

 

Vanda

[1] O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XIV, Item 8

[2] Idem

[3] O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XIV, Item 8

[4] O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XIV, Item 9

[5] idem

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