Uma peregrinação pelas obras que compõem o acervo da Doutrina dos Espíritos nos conduz à verdade absoluta sobre a imortalidade da alma e à inderrogabilidade da Lei de Progresso, estimulando o Ser Inteligente à gradativa e incansável luta para desapegar-se de tudo o quanto lhe possa obstaculizar o processo ascensional. Embora sabedores dessa revelação, que encontra seu fundamento no Evangelho de Jesus, Senhor a quem seguimos por racionalidade, longe estamos de nos desvencilhar das grosseiras amarras que nos prendem aos sentimentos e prazeres, vínculos ora grosseiros, ora sutis, mas todos eles impeditivos de uma libertação autêntica quanto completa, capaz de nos habilitar a uma jornada ascensional pelos caminhos traçados pela poeira cósmica.
Por ora, pedras e tropeços. Quedas que nos fazem recordar quão difícil é colocar em prática aquilo que interiorizamos graças à teoria. Procuramos os meios ao nosso alcance para estimular o exercício do amor ao próximo, piedade, perdão, humildade e todas as virtudes compatíveis a um Ser cristianizado, mesmo assim não somos capazes de nos livrar de alguns sentimentos que, conquanto não sejam propriamente grosseiros, constituem insuperáveis “calcanhares de Aquiles”. Algemas que exigem recapitulações expiatórias.
Coerente seria que nos livrássemos delas, por vezes sabidamente inconvenientes, mas não o fazemos porque elas nos são caras ao sentimento. A memória integral do Ser Espiritual jamais se apaga, conquanto se arrefeça, o que explica as recaídas em alguns quesitos que a elevação espiritual ainda não logrou sublimar.
Espelhemo-nos nos dois exemplos seguintes, para melhor reflexão. Um belo dia, instado a falar sobre a entidade espiritual Meimei, Chico Xavier revelou ser ela uma colaboradora incansável, mas que, em certa ocasião, tendo encaminhado o seu ex-marido para novas núpcias, posto que ele se achava acabrunhado em virtude da viuvez, foi tomada de ciúmes e desejou voltar para junto dele. Considerando que não poderia fazê-lo na condição de esposa, cogitou de reaproximar-se como sua filha. Bastou que pensasse nessa possibilidade, para que Emmanuel lhe dirigisse a seguinte admoestação: “Suas horas de trabalho falam alto a seu favor. A senhora tem méritos suficientes para nascer como filha de seu ex-esposo, mas por que, então, a senhora sensibilizou tantos corações com suas mensagens, levantando creches e lares para crianças? Deseja deixar o trabalho sobre os ombros dos companheiros e voltar à Terra por uma simples questão de ciúmes? Posso encaminhar seu requerimento às Autoridades Superiores, mas quero que a senhora fique bem certa de que ele vai sair daqui com o primeiro não, que é o meu.” ([i]) Nem se precisaria dizer que ela desistiu da ideia e permaneceu ativa no Mundo Espiritual.
O segundo caso diz respeito a André Luiz e foi relatado por ele mesmo, em Nosso Lar ([ii]). Embora afeito às atividades socorristas, nos grupos espirituais a que se filiara, mantinha-se firme na esperança de rever a família que deixara no plano terreno. Passado um ano, o Ministro Clarêncio, reconhecendo-o credor de regular quantidade de horas de trabalho extraordinário, concedeu-lhe uma semana de folga para que, finalmente, pudesse rever esposa e filhos. Se o acesso ao lar material lhe foi fácil, o reencontro tornou-se doloroso porque se deparou com a casa ocupada por outro homem com o qual a viúva se havia consorciado e dele cuidava com extremado zelo, aflorando-lhe cruelmente o ciúme. Teve ímpetos de odiar o intruso, mas se conteve diante do amadurecimento espiritual que o transformara. Findou por auxiliar na recuperação da saúde daquele que seria seu pretenso desafeto.
No primeiro, a colaboradora renunciou ao desejo de acompanhar a jornada de seu antigo amor, para prosseguir no cumprimento do nobre compromisso espiritual, em cuja atividade nutria um prazer sublimado. No segundo, temos um socorrista reabilitado que foi posto à prova de rever seu antigo lar remodelado, tendo-se saído vitorioso diante do conflito íntimo, condição para ratificar a confiança que seus superiores lhe depositavam.
Ambos revelaram maturidade espiritual, patamar que haveremos de alcançar desde que nos preparemos para o desapego gradativo das coisas materiais, das paixões grosseiras, do individualismo improdutivo e passemos à condição de autênticos aprendizes que seguem o Caminho, buscam a Verdade e confiam na Vida Eterna. Mas nem por isso, esses queridos paradigmas deixaram de passar pela prova de fogo, o combate consigo mesmo, que nem mesmo Paulo de Tarso, beneficiado pela visita pessoal de Jesus, conseguiu evitar.
Sopesemos as circunstâncias para concluirmos que as amarras que prendiam os pensamentos desses dois Espíritos exemplares à superfície terrena eram de natureza puramente afetiva, tangenciando ciúme compreensível, mas cederam seus impulsos diante dos valores mais altos resultantes dos novos compromissos que lhes exigiam amor fraterno, puro, incondicional, representativo da essência divina. E, posto haverem alcançado esse nível de sentimento, era mesmo de se esperar a renúncia de seus apelos.
Contudo, ainda prevalece entre nós um chamamento exacerbado por coisas fúteis; falam alto o predomínio da posse e o egoísmo, filho do orgulho, que serve de justificativa para atos muitas vezes antagônicos ao da caridade, da benevolência.
Examinemos que tipo de apego nos aprisiona a mente e o coração para termos uma resposta franca se estamos em condições de renunciar a alguns deles em benefício de uma causa nobre. Conforme seja ela, é tempo de reformulações, para que, em chegando a nossa vez de encararmos de frente a realidade da vida espiritual, nossos conflitos possam ser solucionados com sabedoria, sob a luz do Evangelho.
Marcus Vinicius
[i] Revista Informação – nº 279
[ii] Nosso Lar – Pelo Espírito André Luiz – Francisco Cândido Xavier – Cap. 49 – Regressando a Casa