Narra a mitologia grega (1) que Psique era filha de um rei cuja beleza indescritível atraía súditos e estrangeiros em verdadeiras procissões devocionais.
Sabendo desse fato, a deusa Afrodite (Vênus, na mitologia romana), ofendeu-se profundamente com as homenagens prestadas à mortal Psique, tendo convocado o seu filho Eros (Cupido, na mitologia romana), para que fizesse a jovem se arrepender da sua beleza.
Obediente, Eros tratou de cumprir as ordens da mãe, derramando algumas gotas de água amarga nos lábios de Psique enquanto ela dormia.
Entretanto, a mortal acordou sobressaltada, sem perceber o deus próximo de si. Eros, assustado, feriu-se com a sua própria seta, a mesma que provocava as paixões irresistíveis nos alvos humanos que ele frequentemente atingia.
Desde então, todos continuavam a admirar a beleza de Psique, mas nenhum rei, nobre ou plebeu apresentou-se para pedi-la em casamento. Suas duas irmãs, não tão belas como ela, logo se casaram, e Psique passou a lamentar a sua beleza, compreendendo-a como um verdadeiro martírio.
Preocupados com a ira dos deuses, seus pais a levaram ao oráculo de Apolo que previu que o destino de Psique era casar-se com um deus de aparência monstruosa, e que o seu futuro marido a esperava no alto de uma montanha.
Passado o choque e os lamentos iniciais, Psique e seus pais decidiram que o melhor a ser feito era apresentar-se ao deus a quem estava destinada. E assim foi feito. Psique subiu ao alto da montanha indicada, tomada de emoção e medo. Enquanto chorava a própria sorte foi colhida suavemente por Zéfiro (guardem esse nome), o deus do vento oeste, mensageiro da primavera.
Psique foi levada por Zéfiro a um vale florido que secundava um palácio majestoso, onde estabeleceu morada. Apesar da beleza grandiosa do local os seus dias eram solitários porque ainda não lhe era permitido ver o futuro esposo. Pediu a Zéfiro que trouxesse suas irmãs para visitá-la, no que foi prontamente atendida.
Sabendo do acontecido no oráculo de Apolo, e após o relato de Psique sobre como estava vivendo naquele palácio, as irmãs sugeriram que, na calada da noite, Psique fosse espreitar o deus que lhe estava destinado com uma candeia e uma faca afiada e que, se de fato ele fosse um monstro, ela cortasse a sua cabeça e recuperasse a liberdade.
Os conselhos infelizes foram ouvidos por Psique que colocou o plano em execução. Ao chegar à beira do leito de Eros, munida da candeia em uma das mãos e da faca na outra, ela se deparou com a beleza inebriante do deus. Eros acordou e se ofendeu com a amada. Imediatamente a expulsou do palácio, determinando que “descesse” ao plano das suas irmãs para com elas conviver, porque o amor não pode coexistir com a suspeita.
Após a expulsão do palácio Psique caminhou noite e dia, sem repouso, à procura de Eros. Buscou por Zéfiro e chorou as lágrimas do arrependimento, até que foi aconselhada por Deméter (Ceres na mitologia romana), a procurar Afrodite, mãe de Eros, e lhe pedir perdão.
A deusa recebeu Psique e determinou que a mortal realizasse uma série de tarefas de difícil cumprimento, para que ela provasse a capacidade de trabalho e zelo na execução dos deveres que lhe foram confiados. E assim foi feito. Com empenho, e o auxílio do próprio Eros, Psique cumpriu todas as árduas tarefas e bebeu a taça de ambrosia na assembleia dos deuses, casando-se com o seu amado e tornando-se imortal.
A alegoria mitológica é um retrato fiel da trajetória humana em busca do próprio aperfeiçoamento. De um lado a impaciência e a inquietude, os conselhos, as ideias e as diretrizes infelizes que são acolhidas, sem a mínima reflexão, desaguando no erro cuja consequência é a queda. Depois disso a dor do arrependimento, que rasga o peito, e a busca desordenada pelo “paraíso perdido”.
Mas então sobrevém o outro lado, aquele que revela o caminho da redenção pelo trabalho exercido com zelo, interiormente e exteriormente, e com esse novo estado de ânimo abrem-se os portais para os conselhos e as diretrizes propositivas dos deuses, ou Espíritos do bem, em auxílio às criaturas.
De um lado o Ser-lagarta reveste-se do casulo que o isola de si mesmo, gestando a queda e a dor. De outro lado o Ser-falena saindo de si mesmo, metamorfoseado, deixando de se arrastar, para alçar o voo da liberdade. Não por outro motivo, Psique em grego significa tanto alma como borboleta.
O curioso é que em A Gênese, Kardec tratou do tema mitologia exatamente no capítulo XII, item 15, cujo título é Perda do Paraíso, esclarecendo: “Toda a mitologia pagã, aliás, nada mais é, em realidade, do que um vasto quadro alegórico das diversas faces, boas ou más, da Humanidade. Para quem lhe busca o espírito, é um curso completo da mais alta filosofia, como acontece com as modernas fábulas.”
E o mais curioso ainda é que em Obras Póstumas, segunda parte, no capítulo intitulado A minha primeira iniciação ao Espiritismo, Kardec relatou o início da sua intensa trajetória na construção da filosofia espírita, a partir do ano de 1854.
No referido capítulo, Kardec fez menção a um Espírito que costumava manifestar-se por intermédio das irmãs médiuns, Julie e Caroline Baudin. Segundo o codificador: “… era muito bom e se dissera protetor da família. Se com frequência fazia rir, também sabia, quando preciso, dar ponderados conselhos (…) Não era um Espírito muito adiantado, porém, mais tarde, assistido por Espíritos superiores, me auxiliou nos meus trabalhos. Depois, disse que tinha de reencarnar e dele não mais ouvi falar.”
O nome com que o Espírito se apresentou, durante o tempo que colaborou com Kardec, justifica o título deste artigo. Denominou-se Zéfiro, em uma clara referência ao deus do vento que conduziu Psique ao palácio de Eros.
Comentando o nome adotado pelo referido Espírito, após uma comunicação datada de 17 de janeiro de 1857 (Primeira notícia de uma nova encarnação), Kardec considerou que Zéfiro “Talvez fosse mais adiantado do que deixava supor o nome que tomara.”
Certamente era, e ao identificar-se como Zéfiro, o Espírito comunicante teve o claro intuito de estabelecer um paralelo entre a alegoria mitológica de Psique com a trajetória do codificador, como se estivesse avisando a Kardec que aquela encarnação, se bem cumprida, se tornaria um divisor de águas em sua caminhada espiritual, um ganho considerável em seu processo de divinização, mesmo sendo ele um missionário encarregado pela revelação do Consolador prometido.
Foram aproximadamente quinze anos de intensos desafios, de renúncias, de extenuantes horas de trabalhos com prejuízo da própria saúde, de atividades que não conheceram o medo e nem se curvaram às críticas dos adversários.
Kardec enfrentou todos os obstáculos do caminho, cumprindo os planos do Alto ao vocalizar as diretrizes do Consolador prometido e, por seu intermédio, o Cristo repetiu mais uma vez a frase pronunciada dezoito séculos antes: “Eu não vim destruir a Lei, mas dar-lhe cumprimento.” (Mt. 5:17)
Como Psique, Kardec lançou-se à obra redentora com o zelo de quem pretende contrair as núpcias, não aquelas manifestadas pelos humanos, mas as outras a que o Cristo se referiu em algumas das inesquecíveis parábolas, quando nos ensinou sobre a nossa união essencial com Deus, e por sua idoneidade, por seu esforço, por sua renúncia e amor à causa, obteve o amparo dos Espíritos amigos que se engajaram no enorme projeto da codificação.
E ao legar aos homens uma obra robusta que abrangeu a Fé a Filosofia e o Experimentalismo, realizou a grandiosa missão da qual era elo importante na Terra.
Após o seu desencarne, Kardec não bebeu do néctar da ambrosia mas, certamente, no recesso da sua consciência, experimentou o jubilo da elevação do seu patamar espiritual.
É certo que, mesmo assim, não reuniu as condições necessárias à união com Deus, que é processo que só se consuma com a obtenção da perfeição, mas sinalizou a todos os legatários da sua obra que os caminhos iluminativos se abrem com o trabalho zeloso, paciente e da mais pura renúncia, que só aqueles que sentem a Deus, de fato, são capazes de realizar.
A alegoria mitológica e o exemplo vivo do codificador traduzem lição que se aplica a todos nós, porque cada um, a seu modo e em seu tempo, há de alcançar os montes graciosos da qualificação espiritual. Mas para tanto é fundamental empreendermos todos os nossos esforços, utilizando todo o conhecimento que detemos a esse fim. E não importa que não levemos a sério as alegorias mitológicas, tampouco que estejamos distantes do status missionário de Kardec. Impõem-se que nos mantenhamos alertas porque, como Zéfiro, há sempre Espíritos interessados em soprar os ventos suaves e favoráveis em nosso benefício, mas é preciso que apresentemos as condições necessárias porque, afinal, é da lei que lagartas não levantem voo.
Cleyton Franco
(1) O Livro de Ouro da Mitologia (Bulfinch), cap. XI, Cupido e Psique.