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Quem criou o mal?

Há séculos, pensadores das mais variadas tendências buscam responder a essa pergunta, confrontados por um dilema bastante racional – se Deus é todo amor e perfeição não poderia ter criado o mal. Mas ainda aí reside um paradoxo pois que a criação, em tese, é processo exclusivo do Criador.

As filosofias religiosas intentaram resolver esse conflito, criando deuses menores ou anjos caídos que passaram a personificar o mal que predomina em um planeta como a Terra.

Nesse sentido, a narrativa que é mais conhecida no Ocidente encontra-se no antigo testamento, livros de Isaías, 14:12-14 e Ezequiel 28:13-17, diz respeito a um anjo que se rebelou contra o Criador, tendo sido banido do Paraíso e, a partir de então, se tornado a representação do mal. Esse anjo passou a ser conhecido como Lúcifer.

E Lúcifer ganhou tamanha “força” que, mesmo caído ou expulso do paraíso, passou a antagonizar com a onipotência de Deus, o que não deixa de ser natural em um cenário cujas dores e lágrimas eram, e são, o pano de fundo da existência de tantos.

Na mitologia egípcia a personalização do mal coube a Seth, deus da violência, da desordem, da traição, do ciúme e da inveja.

Seth estabeleceu um confronto aberto contra Hórus, filho de Isis e Osíris, pela sucessão deste último, a quem matou visando assumir o comando do Céu e da Terra – o mesmo projeto frustrado de Lúcifer, de Ahriman (Zoroastrismo) e de tantas outras entidades que se sucedem nos livros sagrados como as fontes geratrizes do mal.

Tudo indica que Seth tenha sido o “pai”, a matriz, de todos os deuses e anjos caídos das filosofias religiosas. É a partir dele que o mal se personifica e faz oposição ao bem, em um dualismo que, longe de ser pueril, revela-se um poderoso instrumento pedagógico para criaturas com pouco discernimento, sobretudo nos tempos recuados das primeiras civilizações.

Mas os deuses do mal das civilizações orientais revelam facetas tipicamente humanas. Antes de serem artífices da dor são modelos psicológicos que retratam os vícios, os erros e as más tendências do homem, em uma pedagogia reversa que busca provocar as criaturas a não serem como eles porque, em última análise, também representariam o mal.

No Ocidente, com exceção da Grécia cujos deuses do mal têm inspiração egípcia, nos parece que Lúcifer tem conotação um tanto distinta do seu predecessor oriental.

Ele representa, ao mesmo tempo, o mal que não pode ser de Deus, e a justificativa para as desigualdades e os supostos desarranjos típicos de um planeta inferior.

Diferentemente do Oriente, em que a crença na reencarnação explica dores e sofrimentos, no Ocidente Lúcifer toma para si os infortúnios porque, sem a crença na reencarnação, o homem se descola da sua responsabilidade em face dos acontecimentos que lhe tocam, passando a ser um mero passageiro da própria existência.

Por isso em grande parte do Ocidente, onde a regra é a crença na existência única, Lúcifer é a justificativa mais ou menos plausível das dores profundas (o mal), pelas quais passam as criaturas.

Porém, a Codificação Espírita retira o homem do assento do passageiro e o coloca onde deve estar – no lugar do condutor.

Em A Gênese, III, 4, Kardec assinala e esclarece que as limitadas faculdades do homem impedem-no de compreender o conjunto dos desígnios do Criador, arrematando: “É por isso que, em geral, lhe parece prejudicial e injusto aquilo que consideraria justo e admirável, se conhecesse sua causa, seu objetivo e o resultado definitivo.”

Ou seja, o que a primeira vista parece ser mal, na visão imediata e acanhada do homem, na ótica cósmica de Deus integra o processo inexorável de evolução.

Nem por isso o mal vem de Deus, como esclarecem os Espíritos em O Céu e o Inferno, 1ª parte, Cap. VIII, Os Anjos segundo o Espiritismo, 12 (“Deus não criou o mal…”) e A Gênese, cap. III – Origem do bem e do mal: 1.“Sendo Deus o princípio de todas as coisas (…), infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que seja ininteligente, mal e injusto. O mal que observamos não pode ter nele a sua origem.”

Não sendo obra de Deus, tampouco criação de Lúcifer, conquanto as sombras em muito colaboram com o caos quando encontram abertas as portas da sintonia infeliz, o fato é que o mal decorre do arbítrio do homem multimilenar.

É o que esclarece O Livro dos Espíritos, na questão 634: “Os Espíritos foram criados simples e ignorantes. Deus deixa que o homem escolha o caminho. Tanto pior para ele, se toma o caminho mau.”

Quem, no exercício da liberdade de escolha, toma o mau caminho, submete-se aos efeitos do mal, mesmo que agindo por simplicidade ou por ignorância.

Uma vez que já superamos as crenças nas penas eternas, em que a prática ou o assentimento com o mal nos condenaria definitivamente à perdição, convém refletirmos sobre a natureza dos males que nos acometem a existência, colocando-os em outro nível de compreensão.

Os Espíritos amigos nos socorrem nesse exercício reflexivo, esclarecendo que: “Embora necessário, o mal não deixa de ser mal.” (O Livro dos Espíritos, questão 638)

E complementam essa lição com outra, igualmente relevante: “Entretanto, Deus, todo bondade, pôs o remédio ao lado do mal, isto é, faz que do próprio mal saia o remédio.” (A Gênese, III, 7)

Interpretando os dizeres dos instrutores da erraticidade, consideramos ser o mal necessário porque ele decorre, inicialmente, da simplicidade e da ignorância dos Espíritos criados, que necessitam calejar o íntimo e adestrar a mente através de diversas experiências nos vários campos do conhecimento, o que muitas vezes gera escolhas infelizes.

A alegoria bíblica do pecado original (Gênese, 3), em que os precursores da Humanidade comeram do fruto do conhecimento (proibido), é representativa da necessidade dessas experimentações, mesmo que no mal, para se forjar nos Espíritos o sabor das coisas que existem, em seus variados matizes, e que um paraíso de gozos, delícias e indolência, jamais forneceria.

Poderíamos comparar a passagem bíblica e a advertência dos Espíritos sobre a necessidade do mal, à iniciativa de um pai que, por vias indiretas, estimula o filho a ir ao mundo e saborear as experiências – todas que o coração do jovem entender adequadas, para no futuro retornar à casa paterna com as marcas e as lembranças das dores, das graças e de todo aprendizado colhido pelo caminho.

Porém, mesmo que a experiência no mal revele-se necessária nos trajetos da evolução, o mal realizado será sempre mal, cabendo a quem o pratica responder nos recessos da própria consciência, segundo os imperativos da Lei de Deus.

Todavia, chega a hora em que a repetição das realizações no mal torna-se de tal modo insuportável que as criaturas, cansadas de sentir o mesmo gosto amargo dos desenganos, deliberam por modificar-se, escolhendo libertar-se dos atos viciosos que lhes sopesam a economia espiritual, sendo por esse motivo que os Espíritos amigos esclarecem: “… do próprio mal saia o remédio.”

Aí reside a beleza e a grandeza do processo de Deus, pois o direito de escolha do caminho vicioso é o mesmo direito que se firmará pela renúncia definitiva a esse mesmo caminho, no tempo, modo e segundo as condições das criaturas ungidas pela prerrogativa sagrada do livre-arbítrio.

Cleyton Franco

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