A personalidade polêmica de Judas Iscariotes gera controvérsias e debates até os dias de hoje. Nascido em Kerioth, na Judeia, era o único não galileu entre os apóstolos, sendo definido por seus pares como um homem desonesto e traidor.
João fez duríssimas considerações sobre ele em seu Evangelho (12:6), afirmando que: “… era ladrão e, tendo a bolsa comum roubava o que aí era posto”, em uma clara alusão sobre o cargo de tesoureiro (Jo,13:29) que o próprio Jesus lhe outorgou, certamente porque Judas reunia o preparo intelectual necessário à função.
É verdade que Mateus também era versado na administração de recursos, vez que desempenhou o papel de publicano ou arrecadador de tributos antes da própria conversão. Porém, há toda uma pedagogia de perdão e redenção no ato de Jesus para com Judas que, na verdade, não entendeu a importância do mandato que lhe foi conferido, tampouco se integrou de corpo e alma à grandeza do movimento, como fizeram os outros onze apóstolos.
Há quem afirme, com base no manuscrito denominado o Evangelho de Judas, que não houve traição porque o apóstolo teria atendido a um pedido do próprio Jesus, versão que não se compatibiliza com os relatos evangélicos e com o ato final de Judas, o suicídio, que revela sua alma corroída pelo remorso.
Existem ainda os que alegam ter sido Judas Iscariotes um revolucionário, que via na personalidade magnética de Jesus e em sua capacidade de convencer, não só pelas palavras como também pela ação, muitas vezes extraordinária, um quadro essencial à aglutinação dos hebreus em torno da ideia do levante contra a dominação romana. O poder de Jesus concretizaria o reino de Israel em face de Roma.
Porém, como Jesus não aderiu ao projeto político, a ideia subsequente foi entregá-lo ao Sinédrio, na expectativa de que Ele realizasse os “prodígios” que fariam os seus algozes curvarem-se e os judeus unirem-se na revolta contra Roma.
Se, de fato, Judas Iscariotes pretendeu utilizar Jesus em um projeto político, teve suas expectativas frustradas pelo interesse do Mestre no movimento puramente espiritual.
Se o apóstolo houvesse comparecido, com mais frequência, às reuniões em que as diretrizes cristãs foram estabelecidas, teria registrado dois fundamentos basilares da nova Doutrina: “Meu Reino não é deste mundo” (ESE, cap. II), e outro que lhe é complementar: “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21).
Ambos os fundamentos opõem os interesses horizontais do mundo material aos objetivos verticais do mundo espiritual. No mundo de César predomina a busca pela dominação do homem pelo homem. No mundo de Deus vigora o esforço pelo aprimoramento dos valores espirituais que se encontram latentes em todas as almas, razão pela qual os interesses dos reinos de Deus e de César não se entrecruzam, dada a distinção das suas respectivas naturezas.
Enquanto esteve encarnado na Terra Jesus primou por exaltar a busca do mundo de Deus. Porém, os que deram continuidade à divulgação do seu Evangelho, à semelhança daquele hipotético Judas revolucionário, não entenderam o alcance dos dois fundamentos. Transformaram o Cristianismo em política de Estado, em que a supremacia sobre os demais credos passou a ser a principal diretriz, coadjuvada por torturas, mortes, achaques e constrangimentos impostos aos supostos “hereges”, sempre sob o signo da cruz, não a de Jesus, evidentemente.
O tempo correu e a política em “nome de Jesus” adquiriu relevo surpreendente no final do século XI, a partir de dois eventos históricos conhecidos: as cruzadas e a inquisição.
As cruzadas ocorreram por aproximadamente dois séculos (final do séc. XI ao final do séc. XIII), tendo sido “vendidas” por seus patrocinadores, sobretudo, como um movimento de retomada de Jerusalém, a cidade santa. Para tanto, até crianças foram usadas como soldados nas batalhas (4ª cruzada), sob o fundamento de que, por serem puras, teriam a proteção e simpatia de Deus.
A inquisição, por sua vez, vigorou por cerca de nove séculos, tendo como objetivo julgar e punir pessoas que, no entendimento dos tribunais, desviavam-se dos ensinamentos de Jesus ou das orientações da Igreja.
Em 1.183 foi instalado o primeiro tribunal da inquisição para julgar e punir as heresias dos Cátaros, povo encontrado predominantemente no sul da França. Hermínio Correa de Miranda publicou um excelente estudo sobre o evento, compilado na obra Os cátaros e a heresia católica.
Cinquenta anos se passaram até que o Papa Gregório IX determinou o reinício da inquisição, no ano de 1.233, sendo certo que os anos compreendidos entre o século XIII e XVII foram os que mais produziram violência, morte, expropriações e atos de dominação e desrespeito à liberdade individual.
Tanto aqueles que se envolveram nas cruzadas, quanto os partícipes da inquisição, brandiram o Evangelho de Jesus e justificaram os seus atos na defesa dos princípios sagrados do cristianismo.
Entretanto, não conseguiram ocultar a sanha dos conquistadores e a impiedade dos incautos que detêm o poder provisório do mundo. Ostentaram a cruz do Cristo no peito, mas os seus corações estavam cheios de cobiça e desejo de dominação.
Mas com os séculos XVIII e XIX os ventos da renovação passaram a soprar sobre a Humanidade.
O século XVIII trouxe a revolução francesa e o princípio do Estado laico, segundo o qual a religião é assunto da vida privada dos indivíduos, sem qualquer influência nos assuntos de interesse público.
O século XIX trouxe uma lufada de doutrinas e filosofias liberais, como comumente acontece quando se abrem as comportas do pensamento reflexivo represado por longo tempo.
No processo de secularização (passagem de crenças do domínio religioso para o leigo) do século XIX, colhemos teses e pensamentos em clara oposição à política em “nome de Jesus”.
Nesse sentido, dois exemplos são profundamente marcantes.
O primeiro deles emana da obra do pai da Sociologia, Augusto Comte (Curso de Filosofia Prática. Discurso sobre o Espírito Positivo. Discurso Preliminar sobre o Conjunto do Positivismo). Nela o pensador propôs a fundação da religião da Humanidade ou religião positivista, dotada de templos, sacerdotes e diretrizes para a substituição de Deus pela Humanidade, e dos eventos sobrenaturais ou metafísicos pelas leis da Natureza, tendo a Ciência como única via de direcionamento do Ser.
Friedrich Nietzche, nascido em família de pastores protestantes e um dos expoentes do niilismo do século XIX, ao lado de Schopenhauer, escreveu em letras maiúsculas na obra denominada, O Anticristo: “Deus está morto!”
São apenas dois exemplos, dentre muitos, de como a “cezarização” dos assuntos do reino de Deus, se me permitem o neologismo, destruiu a fé das criaturas e as afastou do caminho da religiosidade.
O deus colérico, arbitrário, injusto e mercador de indulgências, criado pela política de Estado, de fato, estava morto.
Porém, um professor de Lyon, de pseudônimo Allan Kardec, propôs que se retomasse o cristianismo dos primeiros séculos, segundo as diretrizes de Jesus. Foi prontamente advertido por um de seus pares, de nome Charles Richet, para que abandonasse a ideia da religião, em claro desprestigio nos círculos da intelectualidade orgulhosa da Europa do século XIX.
Nem por isso o discípulo de Pestalozzi interrompeu a obra que se consolidou a partir das manifestações dos Espíritos, colhidas em quase mil centros espalhados por todos os cantos do mundo.
Muitos dos intelectuais com os quais convivia viraram-lhe as costas, e trezentos exemplares da primeira obra editada, O Livro dos Espíritos, foram queimados em praça pública, no ano de 1861, na cidade de Barcelona, em um dos últimos capítulos da inquisição que já não detinha mais a força de queimar homens, limitando-se à simbologia representada no abrasamento das ideias dos seus autores.
Com o século XX veio a reação de uma corrente filosófica denominada tradicionalismo. Segundo essa vertente, representada pelo francês René Guenon e pelo italiano Julius Evola, a religiosidade deve retomar a sua posição como eixo da sociedade, combatendo-se frontalmente a Ciência, o racionalismo, a massificação que desumaniza as pessoas, a ideologia de gênero e as imigrações, consequência do globalismo, em uma espécie de retorno aos costumes e fundamentos que imperavam antes do Renascimento (século XIV).
Neste século XXI as teses tradicionalistas vêm ganhando adesões, na Europa e nas Américas, entre homens que estão próximos ao poder e, portanto, reúnem capacidade de influenciar as deliberações de Estado.
Por essa razão testemunhamos nos dias que correm a adoção de políticas de negação das conclusões científicas, de oposição aos direitos das minorias, de intransigência quanto às necessidades dos refugiados e da exaltação de uma supremacia racial, seguindo o pensamento de Evola, que colaborou com o projeto de Benito Mussolini na Itália e considerava os arianos superiores aos semitas e negros, assim como os homens mais elevados em relação às mulheres.
Se é inegável a enorme contribuição que a religiosidade pode dar às relações entre os indivíduos, também é fato que ela não pode opor-se, em se tratando de religiosidade ocidental, aos princípios do amor ao próximo, da caridade, da humildade e do perdão, professados pelo Cristo de Deus, sob pena de, em lamentável repetição da História, vermos ressurgir de um evangelho apócrifo, a figura “aureolada” de César distribuindo regras velhas em roupas novas e cooptando para a empreita mundana o próprio Jesus, mesmo ante a manifesta revelia do Mestre.
Saibamos compreender o alcance do reino de Deus e cultivá-lo na essência de nossas almas, para não reavivarmos as chamas crepitantes do nosso passado em que ferimos pela espada, pelo escárnio e pelo aplauso com as mãos sujas de sangue em meio à turba ensandecida que clamava: Queime! Queime!
Cleyton Franco