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Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram e, espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E, ocasionalmente, descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou ao largo (…). Mas um samaritano que ia de viagem chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão. E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, aplicando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem e cuidou dele E, partindo ao outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele, e tudo o que de mais gastares eu te pagarei, quando voltar.” (Lucas 10:30-35).

A pandemia provocada pela disseminação do vírus Covid-19 tem nos feito viver momentos sem precedentes: as sociedades jamais estiveram tão bem estruturadas para que seus integrantes pudessem se isolar por tanto tempo, com tamanho conforto. O avanço da tecnologia nos conferiu a possibilidade do trabalho e do estudo remotos, facilitou a compra e o armazenamento de alimentos e oferece facilidades que eram inimagináveis nos períodos de guerras e pandemias a que a Humanidade sobreviveu.

Nesse intervalo de afastamento da convivência comunitária, o planeta pôde respirar ar puro e nos mostrou a importância do compartilhamento e da sinergia entre as atividades. Uma nova maneira de coexistir abriu portas para a economia solidária como caminho para a sustentabilidade social. Nações partilham conhecimento para retardar o avanço da doença e trabalham juntas na prevenção e descoberta de vacinas. Simultaneamente, o isolamento nos obriga à busca da reconexão com o nosso íntimo, dando azo à autocrítica e à reformulação dos relacionamentos nos lares[1]. O Homem precisou se reinventar e muitos se sentem em regeneração.

Mas como sentir plena satisfação quando a realidade descrita nos parágrafos anteriores concerne apenas à metade da população mundial e a três quartos da população brasileira? A porção restante vive de maneira bem diferente: segundo a ONU e o IBGE, são 3,4 bilhões de pessoas no mundo[2] e 50 milhões no Brasil[3] lutando abaixo da linha da pobreza.

Os governos não possuem a capacidade de dar auxílio eficiente aos menos afortunados e os culpamos, afastando-nos completamente do problema. Mas esses são justamente os seres invisíveis que faziam parte da paisagem quotidiana de quando saíamos às ruas e que, agora, pairam no véu do nosso esquecimento.

Muitos de nós agem como o sacerdote na parábola do Bom Samaritano. Vemos o homem necessitado e passamos ao largo. Isso é compreensível quando se vive em um local onde a pobreza é endêmica. Não há mesmo como parar em cada esquina para prestar assistência. O questionável não é o “não parar”, mas a postura mental que nos mantém indiferentes a esse quadro diário. Ele deveria ser suficiente para nos sensibilizar e motivar na busca por uma forma de prestar auxílio.

Para essas almas sofridas, os desafios durante a pandemia se multiplicam.  Se, antes, granjeavam o ganha-pão nos semáforos, fazendo biscates ou mesmo recebendo doações, hoje, quase todos passam fome e frio, pois estão ainda mais isolados da porção economicamente privilegiada da sociedade, a mesma da qual auferiam os recursos para a sobrevivência.

Esse desinteresse para com as necessidades dos que sofrem parece refletir certa ociosidade mental e enfatiza uma postura de quem está acostumado a cultivar o contentamento pessoal. Somos possuidores de uma variedade de recursos, mas nossos corações se mantêm fechados à prática da solidariedade sob o argumento da falta de tempo, de dinheiro, da sensação de impotência ou do distanciamento social que o momento exige.

Jesus nos apresentou a caridade na forma de atitudes e de parábolas, mas ainda não aprendemos. A bondade do atendimento dispensado pelo Samaritano obedeceu tão somente ao seu senso de prioridade e às suas possibilidades. Ele reconheceu uma necessidade mais urgente do que a sua e agiu conforme determinava a própria consciência. Tratou o seu próximo como gostaria de ser tratado, não apenas prestando os primeiros socorros. Ele transportou-o e proveu o abrigo, alimentou-o, auxiliou-o na recuperação e garantiu a continuidade do atendimento. Houve a preocupação de que o doente se reabilitasse integralmente, que recebesse os cuidados necessários, ainda que através de outra pessoa.

A caridade é muito maior que a esmola. Doar o supérfluo não confere iluminação espiritual porque não envolve a compreensão em relação ao outro. Ser caridoso é ser profundamente humano, é se importar e amparar com amor, seja esse amparo material ou emocional.

Da mesma forma que os benfeitores espirituais descem ao nosso orbe em auxílio às nossas carências mundanas, também nós precisamos descer aos locais onde o sofrimento é pungente e os desequilíbrios são mais intensos, a fim de buscar os desamparados. O processo evolutivo se dá pela subida, com a aquisição do conhecimento, e pela descida aos núcleos de necessidade e dor, para que sejam colocadas em prática as propostas de amor que nossas mentes teorizam[4].

O fato de estarmos acostumados com a paisagem miserável, não significa que ela seja natural. Enquanto não fizermos parte da solução, seremos corresponsáveis pelo abismo material que separa as almas encarnadas. Sempre é tempo para a reflexão e para o redirecionamento de valores. Aproveitemos essa oportunidade de olhar para além de nós mesmos. As oportunidades de auxílio estão por toda a parte. Lembremo-nos: fora da caridade não há salvação[5].

Lila

 

[1] Recomendamos a leitura complementar do artigo “O vírus da vez”, de autoria do nosso colaborador Marcus Vinícius, publicado em 29 de maio de 2020, em nosso website: https://centroespiritacaminhodapaz.com.br/2020/05/29/o-virus-da-vez/

[2] https://nacoesunidas.org/banco-mundial-quase-metade-da-populacao-global-vive-abaixo-da-linha-da-pobreza/

[3] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/ibge-brasil-tem-14-de-sua-populacao-vivendo-na-linha-de-pobreza

[4] Inspiração da argumentação: FEB. Estudo Aprofundado da Doutrina Espírita. Livro II, 1ª Ed, módulo III, Roteiro 2.

[5] Kardec, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. XV – Fora da caridade não há salvação.02

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