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A consciência humana passa por um processo de maturação constante que compreende experiências aparentemente intermináveis, até atingir o grau de superação. Esse alcandoramento passa, sem dúvida, pelo cadinho purificador do sentimento. É preciso aprender a ser plenamente do bem. Jesus nos apresentou os caminhos que conduzem à porta estreita – aquela que se abre para a salvação, e nos desafiou a obedecer a determinados comandos. Um desses preceitos fundamentais assim dispõe: “Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. (Mateus, 5:7).

Procuremos entender a extensão desse enunciado. MISERICÓRDIA é termo formado pelas palavras latinas miseratio (compaixão) e cordis (coração), podendo ser traduzida por CORAÇÃO COMPADECIDO. Trata-se de sentimento de dor e de solidariedade em relação a alguém que sofre uma tragédia. Capacidade de sentir o que o outro sente e o ato de oferecer os tesouros do coração aos desventurados. Realiza-se através de atos concretos: perdão, indulgência, graça, clemência, comiseração, piedade. Assim sendo, misericordioso é aquele que tem coração para com os míseros; aquele que compreende e ama os fracos, os ignorantes, os doentes do corpo e da alma, e procura aliviar-lhes os sofrimentos. Esse estado d’alma constitui precisamente o lado místico do cristianismo, que tem seu fundamento na elevação espiritual até se atingir a excelsitude. Allan Kardec resume: “A misericórdia é o complemento da brandura, porquanto aquele que não for misericordioso não poderá ser brando e pacífico.”([i])

Dá-se conta, então, que o “AMAR A DEUS SOBRE TODAS AS COISAS” funde-se no “AMAI AO PRÓXIMO COMO A TI MESMO“ porque, compreendendo a Mente Divina acerca dos destinos dos seres e das coisas, o homem se engrandece a ponto de amar irrestritamente o semelhante, por sentir ser esta a substância do amor divino. Não por força apenas do raciocínio lógico, mas por se haver sublimado. Abandona o círculo dos ruídos sociais que inebriam o homem profano, leigo, desatento às questões transcendentais e se recolhe no silêncio de si mesmo, onde impera a solidão da sabedoria, para viver a dinâmica da solidariedade. Nisso consiste o crescimento aliado à responsabilidade, abrindo o canal humano para as realizações das Esferas Superiores na Terra. Encontra Deus nas coisas e nas criaturas, porque compreende que elas são de Deus.

Nesse estágio do despertamento, o homem passa a viver em Deus e para todas as criaturas. É o estágio referido por PAULO: “já não sou eu quem vive, mas é o Cristo que vive em mim” (Gálatas, 2:20). Aí o egoísmo cedeu lugar ao amor que abrange toda a criação. Sente que seus braços humanos são insuficientes para atender a todas as misérias humanas e desce das alturas para aliviar todas as dores. Instalou-se nele, definitivamente, o espírito de solidariedade. O amor é pleno. Não conhece ódio, rancor, vingança. O perdão passa a ser sinônimo de compreensão da miséria moral alheia. Sabe que seu passado igualmente foi trilhado sobre pedras e lamas, erros, arrependimentos, dores e lágrimas.

Serve ao semelhante, que com ele caminha na linha horizontal, despreocupado se será ou não compreendido. Sabe sobre o risco de sofrer toda espécie de injúria. Muitos dirão que ele deixa de aproveitar as alegrias da vida, dos prazeres enquanto se dedica aos interesses alheios. Mas, despreocupado com tudo isso, receberá o que efetivamente interessa, ou seja, a misericórdia divina, que atua na linha vertical, transfundindo forças noúricas que o comum do povo sequer imagina existir. ([ii])

Quanto mais o indivíduo se dá na linha horizontal, mais ele recebe na vertical. Na oração de São Francisco, há um trecho que diz: “Ó Mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado; compreender que ser compreendido; amar que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado, e é morrendo que se vive para a vida eterna.” Para melhor se compreender essa equação, é preciso estudo constante em busca da verdade, porque a VERDADE É LIBERTADORA. Ela nos levará a conhecer os desígnios divinos na profundidade compatível com nosso estágio de compreensão, que se dilarga conforme a ampliamos. Mas desde logo é plenamente compreensível que o serviço caridoso ao semelhante não está apenas na doação de coisas (fazer o bem), mas sim no aperfeiçoamento individual ao ponto de dar-se de si mesmo, isto é, ser bom (dar de si, o sujeito, não o objeto).  Sentimento na doação faz a diferença. A pessoa pode fazer o bem sem ser boa. Anos a fio, subjuga pessoas no lar ou fora dele e na época do Natal participa de um ato de solidariedade através de farta distribuição de donativos. O ato é bom, mas o sujeito em si, ainda não o é. Essa pessoa não é sequer caridosa, tampouco misericordiosa, pois não tem a menor noção sobre esse estado d’alma. Por isso, Emmanuel optou pelo título: DONATIVO DA ALMA, ou seja, doação em plenitude, não na aparência nem na superficialidade, quando discorreu sobre o trecho evangélico contido acima ([iii]).

Chegamos ao ponto em que podemos identificar os misericordiosos mencionados por Jesus, que receberão a misericórdia de Deus, porque ninguém pode merecer uma dádiva divina sem causa. Com efeito, para que essa graça divina beneficie o homem, é indispensável que ele crie dentro de si o clima propício para sua percepção, que no caso é uma condicionante a não ser confundida com a causa, como se costuma relacionar a causa ao efeito. Aqui, a situação tem a ver com o preparo da essência da individualidade. Ninguém deve ser misericordioso na esperança de merecer a misericórdia divina, pois essa ideia de recompensa tangencia o egoísmo, e perde na substância. Embora o beneficiário do bem que se lhe faz deva ser grato, o benfeitor não tem o direito de esperar pela gratidão. Se o fizer, estará subvertendo a natureza da misericórdia, passando a camuflar interesse moral, subjetivo. O homem crístico trabalha inteiramente de graça, sem esperar resultado externo algum. Trabalha por amor e o faz sempre com perfeição, por sentir a responsabilidade de agir em nome do Cristo, nas mínimas coisas. Não espera aplauso nem se dá a melindres, porque está liberto pela Verdade. Vive sereno, na mais perfeita bem-aventurança.

Legítimo nos seria questionar se isso não estaria acima de nossa capacidade, mas não podemos esquecer que os Espíritos que atingiram esse estágio passaram por caminhos tortuosos até chegar onde estão. Reagiram contra o “homem velho” que os habitava, e fizeram exsurgir o “homem novo”, liberto pela Verdade que descobriram a partir de estudos e investigações constantes. Trata-se de um dos grandes desafios do Ser Humano.

Marcus Vinicius

 

 

[i] O Evangelho segundo o Espiritismo – Allan Kardec – Tradução J. Herculano Pires – Lake, Cap. X, item 4.

[ii] Sabedoria das parábolas Huberto Rohden – Editora Martin Claret – 2ª ed. Cap. 5, págs. 235 a 240.

[iii] Livro da esperança – Emmanuel – psicografia de Francisco Cândido Xavier – Edição CEC – Cap. 25.

One Comment

  • Lila Kuhlmann disse:

    Esse texto é muito inspirador! Muito obrigada pelos ensinamentos! Impossível deixar de apreciar a forma poética como foi escrito. Emocionante!

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