Toda doutrina, seja ela religiosa, filosófica ou política, se apoia em princípios fundamentais conhecidos como dogmas, que normalmente são considerados incontestáveis ou irrefutáveis por seus adeptos.
Os principais dogmas do Espiritismo repousam na existência de Deus; na imortalidade dos Espíritos; na possibilidade de comunicação entre os planos material e espiritual, através da mediunidade; na pluralidade dos mundos habitados e no processo de reencarnação que observa as leis de esquecimento, causa e efeito e evolução das criaturas.
Estes dogmas foram consagrados por Allan Kardec, a partir da coleta de milhares de comunicações mediúnicas que se verificaram em cerca de mil entidades espíritas espalhadas pelo mundo, conforme informação contida em O Evangelho Segundo o Espiritismo (1), tendo como base as perguntas elaboradas pelo próprio Codificador, cujas respostas de caráter idêntico, assemelhado ou convergente, formaram os princípios da Doutrina Espírita.
Dentre os dogmas do Espiritismo, o instituto da reencarnação é o que mais atrai a atenção dos adeptos e a crítica dos opositores, revelando-se o mais candente dos seus princípios fundamentais.
Entretanto, o dogma da reencarnação é muito anterior ao surgimento do Espiritismo.
Nas tradições orais do Brahmanismo, hoje Hinduísmo, cerca de 5.500 anos a.C., o conceito reencarnatório era presente entre os seus adeptos.
Com o advento da escrita na Índia, cerca de 1.800 anos a. C., a reencarnação passou a figurar como princípio no Vedas (escritura sagrada do Brahmanismo/Hinduísmo), e posteriormente no Bhagavad Gita ou canção do bem-aventurado, cujos registros escritos datam de cerca de 400 anos a.C., em que Krishna dialoga com um discípulo de nome Arjuna.
Parte desse diálogo foi transcrito pelo pesquisador espírita Gabriel Delanne na obra A Reencarnação, vazado nos termos seguintes: “Assim como se deixam as vestes gastas para usar vestes novas, também a alma deixa o corpo usado para revestir novos corpos. Eu tive muitos nascimentos e também tu, Arjuna; eu as conheço todas, mas tu não as conheces…” (2)
Emmanuel, na obra A Caminho da Luz, revelou que: “…nenhum povo da Terra tem mais conhecimentos, acerca da reencarnação, do que o hindu, ciente dessa verdade sagrada desde os primórdios da sua organização neste mundo”. (3)
Da Índia o reconhecimento do dogma da reencarnação migrou ao ocidente, fixando as suas principais raízes no Egito, e de lá seguiu para Grécia. Esses conhecimentos espirituais eram denominados mystes ou mistérios do Espírito e seus fundamentos remanesceram ocultos, por muitos séculos, entre sacerdotes, classes dirigentes, iniciados e alguns intelectuais.
Na obra do pesquisador Hernani Guimarães Andrade, Você e a Reencarnação, encontramos os seguintes registros sobre a palingênese no Egito:
“O sacerdote sebenita Manethon afirmava que a reencarnação era também dogma fundamental da religião egípcia. O papiro anana (1.320 anos a.C), diz o seguinte: “O homem retorna à vida várias vezes, mas não se recorda de suas prévias existências, exceto algumas vezes em sonho ou como um pensamento ligado a algum acontecimento de uma vida precedente. Ele não consegue precisar a data ou o lugar desse acontecimento, apenas nota serem-lhe algo familiares. No fim, todas essas vidas ser-lhe-ão reveladas.
“O livro de Fontane sobre o Egito, menciona uma referência ainda mais antiga acerca da palingênese ou reencarnação (3.000 anos a.C.): “Antes de nascer, a criança viveu e a morte não é o fim”. (4)
A partir dos egípcios o truísmo da reencarnação foi lançado para além do mediterrâneo, levado, segundo consta, por Pitágoras e outros intelectuais iniciados nos mistérios, assentando raízes na Grécia, cerca de 600 anos a. C.
Filósofos do naipe de Sócrates e Platão relembraram os seus conceitos e passaram a traduzi-los aos discípulos. Em A República, Platão, discípulo e propagador das ideias de Sócrates, referiu-se à sucessão reencarnatória: “Deve, pois, manter-se essa opinião adamantina até ir para o Hades, (…) evitando o excesso de ambos os lados, quer nesta vida, até onde for possível, quer em todas as que vierem depois. É assim que o homem alcança a maior felicidade.” (5).
Abrimos um parêntesis e retroagimos para cerca de 800 anos a. C., visando constatar que antes dos gregos, o dogma da reencarnação era aceito e vivido pelos gauleses, posteriormente conhecidos como celtas, sendo um dos sustentáculos da sua religião, o druidismo.
A reencarnação era ensinada de geração em geração, por intermédio de poemas orais denominados tríades, porque cada “estrofe” continha 3 afirmações.
Gália era o nome romano dado às terras que compreendiam o atual território da França, partes da Bélgica, Itália e Alemanha.
Léon Denis, na obra Depois da Morte, assinalou que a certeza da reencarnação era tão grande entre os druidas, “… que emprestavam dinheiro para ser pago em vidas vindouras”. (6)
Pois bem. Cerca de 550 anos a.C., Sidarta Gautama, o Buda, também na Índia, erigiu princípios religiosos que contemplaram a reencarnação. Carlos Imbassahy, na obra Religião, anotou que Buda “…declarou que a alma renascia constantemente até a completa depuração de suas impurezas. Liberta do cárcere corporal, iria para o Nirvana, que é a completa tranquilidade do Espírito. (7)
Com a vinda de Jesus à Terra, os apóstolos documentaram os preceitos da Filosofia Cristã, sobre o dogma da reencarnação. Nos Evangelhos de Mateus (XVII, 10/13) e Marcos (IX, 11/13), encontramos referências de Jesus sobre o fato do profeta Elias ser João Batista: “Mas eu vos digo que Elias já veio e não o reconheceram (…). Então, os discípulos compreenderam que Jesus lhes tinha falado a respeito de João Batista”.
E no Evangelho de João, III, 1/13, destaca-se a preleção de Jesus ao fariseu Nicodemos: “…ninguém verá o reino de Deus se não nascer de novo”. Disse-lhe, Nicodemos: “Como pode nascer um homem já velho? Porventura poderá entrar de novo no seio de sua mãe e nascer?” Jesus respondeu: “Eu vos afirmo e esta é a verdade: se alguém não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus. (…) Nicodemos lhe respondeu: – Como pode acontecer isso? Jesus replicou: Tu és mestre em Israel e não entendes essas coisas? (…) Se vos disse coisas da Terra e não credes, como crereis quando vos disser as coisas do Céu?
Diante das passagens evangélicas acima transcritas, a questão que se coloca é por que razão Jesus não ministrou ensinamentos sobre o dogma da reencarnação de forma mais aprofundada?
Responde-nos o evangelista João, XVI, 13: Muitas coisas tenho ainda a dizer-vos, mas não as podeis suportar agora. 13 – Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, ensinar-vos-á toda a verdade…”
A expressão não podeis suportar agora, remete-nos à ideia de imaturidade psíquica dos homens daquela época, o que justifica o fato do dogma da reencarnação ter permanecido oculto do povo em geral no ocidente.
Nem por isso as vozes da Igreja dos primeiros quatro séculos calaram-se. Em O Problema do Ser, do Destino e da Dor”, Léon Denis relata os pronunciamentos favoráveis à reencarnação de S. Clemente de Alexandria, S. Jerônimo, S. Gregório de Nysse e Orígenes, afirmando, a seguir, que esses pronunciamentos, assim como as teorias gnósticas, receberam “descrédito e repulsa” do (2º) Concílio de Constantinopla (553 d.C.), sem fazer qualquer menção à sua proibição. Afirmou ainda que, no século XV, o Cardeal Nicolau de Cusa sustentou, “…em pleno Vaticano, a pluralidade das vidas e dos mundos habitados, com o assentimento do papa Eugênio IV”. (8).
Posteriormente, na obra Cristianismo e Espiritismo, o mesmo autor esclarece, sem se contradizer, que “…a questão da pluralidade das existências das almas jamais foi resolvido pelos concílios, encerrando o capítulo com os comentários de Orígenes sobre os ensinos de Jesus, relatados por João, XIV, 2: “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Não fora assim, e eu vos teria dito”. – “Orígenes comenta essas palavras em termos positivos: “O Senhor faz alusão às diferentes estações que devem as almas ocupar, depois que se houverem despojado dos seus corpos atuais e se tiverem revestido de outros novos”. (9)
Porém, foi apenas no século XIX que o paráclito prometido no Evangelho de João (XVI,13), pavimentou ao mundo ocidental os meandros do dogma da reencarnação.
Através do método científico, Allan Kardec colheu dos Espíritos uma radiografia nítida do processo de preparação e execução da reencarnação, descrevendo-a em detalhes nas obras: O Livro dos Espíritos (1857), questões 132,133, 133a, 166 a 178, 205 e 206, 335 e 336; O Livro dos Médiuns (1861), questão 301; O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), Cap. IV e A Gênese (1868), Cap. I, item 34 e Cap. XI, itens 33 e 34.
Com essa iniciativa, abriu portas para que outros pesquisadores e cientistas dos séculos XIX/XX, tais como: Alexander Aksakof (Animismo e Espiritismo), Oliver Lodge (Evolução Biológica e Espiritual do Homem) , William Barret (No Limiar do Invisível), Eugene Auguste de Rochas (Vidas Sucessivas), Frederich Myers (A Personalidade Humana), Ernesto Bozzano (Animismo ou Espiritismo), William Crookes (Fatos Espíritas), dentre outros, realizassem os seus experimentos e publicassem as suas observações sobre a reencarnação dos Espíritos, norteando pesquisadores contemporâneos como o psiquiatra Ian Stevenson (Vinte Casos Sugestivos de Reencarnação) e a psicóloga Helen Wambach (Recordando Vidas Passadas) que, a partir de seus consultórios, compilaram milhares de casos comprobatórios do fenômeno reencarnatório.
Nos dias de hoje o dogma da reencarnação é um organismo vivo e consolador de milhões de Espíritos que, acolhidos pela graça do esclarecimento nas sessões Espíritas e Espiritualistas, conseguem lançar o olhar para além das penas eternas e dos tribunais de julgamento, fixando-o nos imperativos do perdão, do trabalho e do progresso, com os quais defrontarão os séculos vindouros, até atingirem a própria iluminação.
Cleyton Franco
(1) O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec, Introdução, II – Autoridade da Doutrina Espírita, controle universal da doutrina dos Espíritos.
(2) A Reencarnação, Gabriel Delanne, Cap. I – Revista histórica sobre a teoria das vidas sucessivas. A Índia, pag. 22, 5ª edição, 1979, Edt. FEB.
(3) A Caminho da Luz, Francisco Cândido Xavier/Espírito Emmanuel, Cap. V – A Índia – Os Rajás e os párias, pag. 54, 29ª edição, 1993, Edt. FEB.
(4) Você e a Reencarnação, Hernani Guimarães Andrade, Cap. I – Reencarnação – conceito, resumo histórico, religiões e povos que a adotam. – Na Antiguidade – Egito, pags. 21 e 22, 1ª edição, 2002, CEAC Editora.
(5) A República, Platão, Livro X, 619a, pag. 495, 5ª edição, 1987, Editora Fundação Caluste Gulbenkian, Portugal, tradução Maria Helena da Rocha Pereira.
(6) Depois da Morte, Léon Denis, Cap. V – A Gália, pag. 56, 3ª edição, 2008, León Denis Gráfica e Editora.
(7) Religião, Carlos Imbassahy, Cap. O Buda, pág. 176, 2ª edição, Edt. FEB.
(8) O Problema do Ser, do Destino e da Dor – Léon Denis, Cap. XVII, pags. 378 a 380, 1ª edição, 3ª reimpressão, 2010, Edt. FEB.
(9) Cristianismo e Espiritismo, Léon Denis, Cap. IV, pag. 48, 17ª. edição, 2013, Edt