Trabalho, estudo, condução, responsabilidades domésticas, dentre outras atividades, constituem atribulações da vida e podem tornar a rotina cansativa.
Para a maioria das pessoas, fazer atividades por obrigação é motivo de desânimo e, por vezes, frustração. Esse sentimento não necessariamente tem relação direta com a impressão de justiça, afinal, mesmo o trabalho bem remunerado costuma provocar descontentamento.
O Homem traz em si o instinto de satisfazer as suas necessidades e desejos mais imediatos. Realizar um trabalho imposto por outrem ou pela própria vida lhe é custoso. Esse desagrado provém da limitação da autonomia da sua vontade. Não podendo controlar seu tempo e atividades conforme seu alvitre, se frustra. Assim acontece com expressivo número de pessoas, exceção feita aos artistas, filósofos e escritores que dificilmente se queixam do labor excessivo, mesmo quando sofrem pressão por prazo ou recebem uma crítica negativa. Eles trabalham tanto quanto o restante da população e também passam por dissabores, mas geralmente não reclamam porque amam o que fazem.
Mas como fazer algo com amor contra o próprio querer? A resposta foi dada pelo Cristo. Dois mil anos atrás, os judeus deliberavam quanto ao jugo sofrido por seu povo, em uma assembleia, cujo objetivo era organizar um movimento de resistência aos romanos. Um dos questionamentos era a lei que conferia a qualquer representante de César o direito de exigir que um judeu carregasse sua bagagem até o limite de uma milha. O sentimento de degradação e impotência era quase palpável.
Questionado sobre o fato, Jesus orientou:
“E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas.” Mateus (5:38-42)
Ele ensinou que a forma mais fácil de eliminar o caráter da obrigação é ir além do que é exigido, espontaneamente, pois a lei dos homens não determina a superioridade moral do adversário e nem subtrai o livre-arbítrio daquele que se sente dominado.
Ir além fortalece, pois demonstra poder de escolha e, ao mesmo tempo, confunde e “desarma” o oponente. A satisfação por surpreender, por se superar, naturalmente leva à vontade de transpor novos limites. A sensação de bem-estar é consequência que retroalimenta o ciclo virtuoso do bem. Destaca-se, entretanto, que o significado da segunda milha é bem mais abrangente, e seus limites se distinguem de forma cristalina.
Diariamente, precisamos cumprir tarefas que garantem a subsistência e promovem a saúde física e mental de nossos familiares e de nós mesmos. Convivemos com parentes problemáticos, vizinhos difíceis, patrões injustos, transeuntes mal-educados, mas seguimos firmes cumprindo o nosso dever, buscando agir corretamente. Entretanto, mesmo nos sentindo sofridos e abnegados, na maioria das vezes, ainda estamos na seara da primeira milha, pois fazemos exatamente isso: apenas cumprimos o nosso dever.
A primeira milha está no plano do constrangimento. Ela é percorrida a contragosto pois realizamos as tarefas dentro dos limites das nossas obrigações. Permanecer nela faz do dia-a-dia um fardo demasiadamente pesado, pois não há satisfação em obrar.
A segunda milha está no plano do amor e do livre-arbítrio. Adentramos a segunda milha quando escolhemos executar uma tarefa oferecendo o melhor que há em nós; quando optamos por fazer o bem ao próximo, pelo próximo, não importando quem seja o beneficiário. Ela exige uma postura ativa diante da vida. A escolha faz desvanecer a sensação da obrigatoriedade; do empenho surge a satisfação e, com o hábito, passamos a agir com amor, por amor. Então, mesmo em meio às maiores turbulências, somos invadidos por uma paz que somente o cumprimento da nossa parte nos planos Divinos pode conferir, ainda que o resultado não seja o esperado – esse independe do nosso esforço, pois esbarra no livre-arbítrio daqueles a quem tocamos.
Quantos reclamam por ter um filho ingrato? Labutam para que nada lhe falte, desdobram-se para educá-lo, mas, ainda assim, não há mudança para melhor. Não devemos permitir que a frustração e o desespero nos arrebatem, pois não é sem razão que Deus nos confiou aquele Ser. Se o que fazemos não é suficiente, talvez ainda estejamos percorrendo a primeira milha. Então, é necessário que nos doemos ainda mais, que façamos melhor. Urge lembrar que a primeira oportunidade de caridade costuma estar sob o nosso teto, exatamente na figura daqueles que nos desafiam a paciência e nos cobram deveres. Os laços de família invariavelmente reclamam a quitação de dívidas de existências pretéritas. Diante de qualquer situação, em nosso lar, no trabalho, no círculo social ou nas ruas, estejamos conscientes de que apenas percorrendo a segunda milha resgataremos o passivo de outras encarnações.
Para estar nessa segunda milha precisamos entender e aceitar as limitações alheias; quando ouvimos com ouvidos de ouvir, acolhendo; quando buscamos compreender, ainda que ajam conosco com injustiça; quando ajudamos aquele que parece ter tudo, mas segue pedindo mais.
A nós não cabe o julgamento. Compreendamos que inúmeras vezes podemos estar com a razão, mas se o outro está com a necessidade[1], devemos agir com compaixão e tolerância, estender a mão e caminhar junto, confraternizando[2]. Descobriremos a alegria de servir na segunda milha.
Para evoluir, o Homem precisa dominar as reações instintivas e escolher viver a vida como um artista, trabalhando com amor a cada obra. A evolução espiritual mais rápida está na segunda milha, pois é nela que acionamos melhor a centelha Divina que há dentro de cada um de nós.
Não podemos esperar passivamente a “vontade de ir além” surgir, pois isso não acontecerá. Somente mudando a atitude mental e escolhendo agir com boa vontade sentiremos a energia necessária para adentrar a segunda milha. Dar os primeiros passos exige a fé de que esse é o melhor caminho a percorrer, pois apenas servindo ao próximo, com amor, é possível ser verdadeiramente feliz.
Lila
[1] Adelino de Silveira. “Chico, de Francisco”.
[2] Francisco C. Xavier pelo Espírito Emmanuel. “Cartas do Coração”.