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Os verbos “escutar” e “ouvir” embora sejam sinônimos quanto à função de captar tanto os sons emitidos pela fala como os característicos de tudo o que existe na Natureza, possuem aspectos diferenciados em nossa vida de relação.

Enquanto “escutar” desperta nossa atenção para “ouvir”, este último nos faculta entender o que escutamos.

O Mestre Jesus nos fez perceber essa sutil diferença quando afirmou: “Ouça quem tem ouvidos de ouvir”.

A multidão que O seguia, salvo os portadores de deficiência auditiva, efetivamente escutava o que Ele dizia, mas, quantos entenderam as Suas mensagens, isto é, quantos tiveram “ouvidos de ouvir”?

É compreensível que, àquela época distante, houvesse dificuldade para o entendimento, uma vez que tudo o que o Nazareno dizia fugia aos padrões culturais e religiosos da sociedade judaica. A escolha por disseminar a Boa Nova através de parábolas foi justamente por sentir na linguagem simbólica, aplicada aos costumes vigentes, uma comunicação mais receptiva à compreensão.

Se ouvir pressupõe entendimento daquilo que se escuta, a sequência natural será a aceitação, ou não, da lição, da tese, da opinião, enfim, do ensinamento que está sendo exposto, gerando reflexão, troca de ideias, conversação.

No aspecto da conversação, ouvir é tão ou mais importante que falar. Não obstante, no estágio evolutivo em que se encontra a Humanidade, todos querem falar muito, e poucos se dispõem a ouvir.

Um renomado escritor brasileiro de nome Rubem Alves, escreveu um texto que intitulou “Escutatória”. Leitor, abusando de sua paciência, reproduzo aqui alguns trechos que nos são de grande valia para a compreensão do alto significado de saber ouvir. Diz ele:

 

“ Sempre vejo anunciado cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar (…) escutar é complicado e sutil…

Parafraseio Alberto Caieiro: “não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma”. Daí a dificuldade: nós não aguentamos ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que nós queremos dizer…

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…”

 

E o consagrado autor segue em seus apontamentos e conclusões.

 

Nos sítios espíritas são inúmeras as atividades que nos convidam a desenvolver a arte de ouvir, dentre elas, as Exposições do Evangelho. Escutam as palavras do expositor, os que se interessam em aprender, conhecer mais. Estes, alcançando a condição de “ouvidos de ouvir” estarão aptos a transformações, conforme o maior ou menor esforço que fizerem visando as mudanças internas. Outros, porém, embora escutem, no início, com algum proveito, acabam perdendo a atenção porque a desviam para questões de ordem pessoal, para a mensagem do celular ou para o embalo do sono, que lhes são mais chamativos e atraentes do que o assunto evangélico em pauta. Perdem, dessa maneira, a oportunidade de agregar conhecimento, fator preponderante na mudança de rota.

Saber ouvir é uma arte. Sim. E por essa razão mesma, é preciso examinar o que se ouve; passar pelo crivo da razão e do bom senso o que registramos pelos ouvidos. É como o alimento que nos serve à subsistência: imperioso selecioná-los.

Mas a tal arte não se restringe somente ao proveito próprio. Ela se transforma em caridade quando se dispõe, num Atendimento Fraterno, ouvir as amarguras e aflições dos que jornadeiam por estradas de angústias; dos que se acham combalidos, sem respostas aos seus porquês, num vazio existencial onde o suicídio, muitas vezes, lhes acena como válvula de escape do sofrimento atroz… Dos que, envergonhados, carregando remorsos e arrependimentos tardios, mal ousam balbuciar algumas frases, temendo expor seus desacertos… o que irão pensar de mim? Dos que se envergonham porque sua gramática não condiz com os padrões do bem falar; dos que não creem ser merecedores de alguma forma de ajuda. Extensos e dolorosos os dramas alheios.

Quem se dispõe a ouvir buscando entender o outro nas suas histórias, que encerram conflitos e desajustes desta ou de outras encarnações, abre espaços internos para receber a inspiração do Alto, quanto ao pensamento essencial, indicador da melhor palavra, da melhor sugestão.

Ouvindo alguém com paciência e atenção pode-se dissuadi-lo da ideia do suicídio, por exemplo, devolvendo-lhe a esperança, ofertando-lhe um pouco de paz.

Era assim que Jesus agia, quando parava para escutar (e auscultar) alguém.

Geralmente dedicamos nossos ouvidos para, de posse dos erros e desenganos alheios, fazer disso assunto de conversação perturbadora, ressaltando os defeitos do outro, esquecendo-nos dos nossos próprios, muitas vezes bem mais graves…

Encerramos estes apontamentos trazendo de volta um pouco mais de Rubem Alves:

 

“Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e nossa beleza se juntam num contraponto. Ouçamos os clamores dos famintos e dos despossuídos de humanidade que teimamos a não ver nem ouvir. É tempo de renovar, se mais não fosse, a nós mesmos e assim nos tornarmos seres humanos para o bem de cada um de nós”.

 

“Ouça quem tem ouvidos de ouvir” – Jesus

 

Yvone

 

2 Comments

  • Ruth Rochel disse:

    Yvone, que saudades, provavelmente você não se lembrará de mim, mas nunca a esqueci.
    Ainda estou tentando alcançar o silêncio dentro da minha alma para me tornar uma boa ouvinte, a boca nervosa ainda não foi totalmente domada.
    Espero que esteja bem, passando a pandemia voltarei a frequentar o Caminho, não me adaptei tão bem a nenhum outro Centro Espírita.
    Procurei vídeo de palestras suas mas não encontrei, que pena.
    Um grande beijo, minha mestra.

  • JORGE JOSSI WAGNER disse:

    Excelente texto. Muito racional mesmo.

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