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Muitos de nós nos encontramos em dúvida quanto ao que recebemos do próximo. Nem sempre são palavras amigas – a inveja, o orgulho e a ingratidão são alguns dos sentimentos que elencamos e que nos apanham “de surpresa”. As aspas são ironia para esclarecer que, sob a nossa ótica, somos sempre as vítimas das atrocidades alheias e temos muita facilidade de culpar o outro por tudo o que parece dar errado.

Falando, primeiramente, sobre culpa, os dicionários a definem como a “responsabilidade de uma ação que gera dano ou prejuízo ao outro. Na justiça dos homens, a culpa está relacionada à omissão de diligência exigível a um sujeito (ou seja, a falta de atenção desse sujeito no cumprimento daquilo que lhe é exigido, o que resulta na infração legal).           Já as definições de dívida se referem à “quantia que se tem de pagar a alguém” ou “obrigação moral contraída por favor e/ou bem recebido”. Em resumo, algo que “devemos” e ainda não pagamos.

Sob a ótica da Doutrina Espírita, somos todos imortais em busca de evolução, e nossa vinda a um planeta de expiações e provas é uma oportunidade de nos ajustarmos com aqueles a quem ferimos e com aqueles que nos feriram. Para isso, contamos com sucessivas encarnações. Nesse contexto, os conceitos de dívida e culpa ganham nova dimensão, pois nossa primeira reação à culpa é o arrependimento. Isso não significa que estar arrependido nos isenta da responsabilidade (leia-se culpa) por atos que praticamos e, muito menos, nos isenta de reparar o mal praticado (leia-se dívida).

Avancemos um pouco mais: para os que ignoram o processo reencarnatório e toda e qualquer teoria dele decorrente, não há como aceitar a universalidade de dívida e culpa, pois para estes, apenas a justiça dos homens é aceita. A hipótese de dívidas anteriores a esta existência, simplesmente é rechaçada. E muitos a quem “devemos” ou dos quais “somos credores” se encontram na massa acima descrita, o que torna o processo ainda mais complexo. Para trazer ainda mais fumaça aos enunciados, muitos espiritualistas justificam suas dívidas atuais a erros de existências passadas e sequer atentam para evitar os danos colaterais dos deslizes desta encarnação.

Na oração que Jesus nos ensinou, o Pai Nosso, o trecho “perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores” deveria, por si só, encerrar a discussão: podemos ser perdoados pelo que fizemos (nesta ou em outras encarnações), mas também precisamos aprender a perdoar, se nos imaginamos credores. Vale repetir o que todos sabemos: ao nascermos, o oblívio de vidas passadas facilita o recomeço e restaura o livre-arbítrio. A escolha (para o bem ou para o mal) é nossa.

Um bom caminho para nortear essa escolha se encontra no quinto capítulo d’O Evangelho Segundo o Espiritismo[1] , intitulado Bem-aventurados os Aflitos, que nos dá a exata dimensão das nossas aflições – aquelas mesmas que muitas vezes julgamos ser de responsabilidade alheia. Justo e bom, Deus nos deu a opção de escolher o caminho, nutriu-nos com os ensinamentos do Evangelho e confiou em nossa soberania moral, trazendo-nos maior compreensão através do Espiritismo.

Dito isso, vamos dar a devida roupagem para dívida e culpa. O primeiro passo é compreender a distinção entre a origem das aflições desta e das existências pregressas. Kardec nos lembra que, ao enfrentarmos nossas vicissitudes, devemos interrogar nossa consciência e descobrir se estão relacionadas à encarnação presente. Se sim, devemos nos responsabilizar (leia-se assumir a culpa) e trabalhar para o aprimoramento moral, única forma de evitar tais empecilhos. Se as causas dos males não se encontram nesta existência, certamente estão nas pretéritas, como resulta do axioma citado por Kardec: todo efeito tem uma causa”, para esclarecer que “tais misérias são efeitos que devem ter uma causa e, desde que se admita um Deus justo, essa causa deve ser justa”. Ficam desta forma explicadas as discrepâncias sociais entre seres do mesmo orbe, “…as anomalias que a distribuição da felicidade e da infelicidade entre bons e maus neste mundo apresenta”.

O sentimento de arrependimento que nos acomete após a consciência da dívida e a clareza de sua inadequação é o primeiro passo para sua remissão. E só se arrependem sincera e verdadeiramente de seus atos, segundo Kardec, os que conseguiram desenvolver a maturidade do senso moral, compreendendo a extensão de seus erros e a necessidade de corrigi-los.

Crer que “(os aflitos) serão consolados[2] e resignar-se diante dos acertos e ajustes que nos competem na jornada presente não é tarefa fácil. Jesus, em nenhum momento, assim nos prometeu. Ao contrário, deixou claro que a redenção individual exigiria renúncias, principalmente de ordem material; que seríamos colocados à prova (por tentações); e que teríamos a chance de redenção por meio de sucessivas encarnações. Que aproveitemos as questões iniciais do capítulo IV de O Livro dos Espíritos[3], intitulado Pluralidade das Existências, para melhor esclarecer o que de fato nos cabe nesta reencarnação, vislumbrando no espelho da alma não apenas uma culpa ou dívida, mas a Centelha Divina que nos capacita e nos enche de esperança.

 

Vanda Mendonça

 

[1] O Evangelho Segundo o Espiritismo, IDE,365ª Edição, pag.53;

[2] Ibidem, pag. 59;

[3] O Livro dos Espíritos, IDE, 182ª edição, pag. 82;

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