O título deste artigo foi tomado de empréstimo da peça teatral da autoria de Mark St.Germain, baseada na excelente obra do psiquiatra e catedrático de Harvard, o professor Armand M. Nicholi Jr, intitulada Deus em questão.
A última sessão de Freud esteve em cartaz por algumas semanas nos meses de março e junho últimos, exigindo a paciência dos santos para a reserva dos ingressos e a resignação dos sábios em face da frustração de não obtê-los.
A peça trata de um imaginário encontro entre o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1), e o catedrático de Oxford, Clive Staples Lewis, crítico literário e autor das obras Crônicas de Nárnia e O Regresso do Peregrino, em que ambos debatem sobre a existência de Deus e a moral universal, dentre outros assuntos.
Porém, o autor da obra em que se baseia a peça adverte ao leitor: “Infelizmente os dois nunca debateram diretamente”. (2)
Lewis, quarenta e dois anos mais jovem que Freud, antes ateu por influência da obra filosófica deste último, converteu-se à fé anglicana quando contava com cerca de quarenta anos de idade, passando a publicar artigos que contestavam as ideias do pai da psicanálise sobre a inexistência de Deus, não havendo registros de que tenha sido respondido.
Um dos fatos que se destacam no livro Deus em questão, é que o autor afirma que os escritos filosóficos de Freud sobre Deus e a moral cristã ocidental, desenvolvidos em cartas, artigos e livros “… eram mais lidos do que as suas obras expositivas ou científicas…” (3)
Por mais de trinta anos Nicholi Jr ministra um curso sobre as ideias filosóficas de Freud na escola de Medicina de Harvard, trazendo um dado, no mínimo, impactante: “Praticamente metade dos meus alunos acaba concordando com ele, e a outra metade discorda fortemente.” (4), referindo-se à visão de mundo ateísta de Sigmund.
Não contamos com espaço suficiente para detalhar, com minúcias, as ideias de Freud sobre Deus, grande parte delas influenciada pelo movimento iluminista dos séculos dezessete e dezoito, que considerava incompatíveis a coexistência da razão com o pensamento religioso.
Mas podemos sintetizar a síntese do pensamento freudiano, a partir das informações que encontramos na obra Deus em questão.
Segundo o professor Armand Nicholi Jr, Freud argumentava que a crença em Deus “…não passa da projeção de um desejo infantil de proteção dos pais contra os sofrimentos da existência humana. (…) E a única alternativa que resta é seguir a recomendação de crescer e encarar a dura realidade de que estamos sós no Universo. (5)
E repetindo argumentos dos iluministas Voltaire, Diderot, Darwin e, posteriormente de Feuerbach, Freud afirmava que: “Devemos nos dizer a nós mesmos que seria muito bom se houvesse algum Deus que tivesse criado o mundo e que fosse uma providência benevolente (…), mas o fato contundente é que tudo isso é exatamente como desejamos que as coisas fossem. (…) as ideias religiosas que são vendidas como ensinamentos (…) são ilusões, realizações dos desejos mais antigos, fortes e urgentes da Humanidade. O segredo da sua força encontra-se na força desses desejos.” (6)
Ou seja, para o pensamento freudiano e iluminista, Deus não passa de uma criação do desejo imaturo das criaturas, a consequência de um infantilismo psicológico ante as sucessivas e plurais dificuldades da vida.
Na visão ateísta, agnóstica e cética da realidade espiritual, são os seres frágeis, ignaros e despreparados psicologicamente que alimentam um ente supremo que pretensamente os protege, em uma inversão de valores em que as criaturas, no seu imaginário imaturo, criam o criador, exatamente para não se sentirem abandonadas à própria sorte.
Uma das consequências da criação imaginária de uma inteligência suprema são os seus efeitos “anestesiantes”, pois grande parte dos criadores tornam-se dóceis, resignados, pacientes, acreditando que tudo se encontra nos desígnios do “criador-criado”, fator que os desmobiliza para os necessários levantes sociais e para as mudanças fundamentais que o mundo exige.
Percebe-se, assim, que o pano de fundo do Iluminismo, e das ideias que lhe foram complementares e alcançaram o ápice no século dezenove, guardam vínculos com a necessidade de mobilização sócio-política das massas, e a crença em Deus pode revelar-se um obstáculo a esse fim, razão pela qual é fundamental combatê-la.
Porém, ao lado da motivação sócio-política, não há como não deixarmos de reconhecer a enorme responsabilidade das igrejas cristãs no movimento de descrença em Deus, sobretudo pelos processos de mercantilização da fé, da instituição de princípios que arrepiaram a observação e a razão, da adoção de práticas criminosas que perpetraram por séculos e da divisão fratricida em que buscavam impor as suas interpretações do Evangelho umas sobre as outras, fazendo-nos lembrar as sábias palavras de Emmanuel: “Querem todos que Deus lhes pertença, mas não cogitam de pertencer a Deus”. (7)
E foram muito mais as ações e omissões equivocadas das igrejas, e muito menos os ideais sócio-políticos, que nortearam filósofos, pensadores e intelectuais a se afastarem da fé e repetirem sem cessar a frase de Nietzche, imortalizada por Zaratustra e o louco: “Será possível! Este velho santo não ouviu em sua floresta que Deus está morto!” (8) / “Deus está morto, e nós o matamos, você e eu!” (9)
No auge do ateísmo ocidental do século dezenove era fundamental rejeitar uma moral absoluta e universal, representada pela ética judaico-cristã como manifestação viva de Deus, para ser possível reavaliar-se os conceitos e valores humanos, visando modificá-los.
Mas, para melhor se compreender esse caldo de descrença em Deus, é preciso engrossá-lo com mais alguns componentes, além da questão sócio-política e dos equívocos seculares das igrejas.
Os dramas pessoais, por exemplo, influenciam a imparcialidade dos julgamentos das pessoas, precipitando manifestações de descrença, mesmo que superficiais.
Tomemos o caso do próprio Freud, que nascido judeu, apesar de não praticante, sofreu imensamente por essa condição. Aos 27 anos foi afrontado em um trem por um grupo antissemita que lhe cercou, chamando-o de “judeu imundo!” (10), o que lhe impactou profundamente; teve de esperar dezessete anos para ocupar uma cadeira na Universidade de Viena, quando o normal eram quatro anos, exatamente porque “… havia preconceito contra ele por ser judeu”. (11) e, tornou-se um refugiado na Inglaterra, em 1938, fugido da perseguição nazista por sua condição religiosa.
Difícil não considerar que tais acontecimentos, e tantos outros que deve ter sofrido pelo simples fato de ter nascido judeu, não tenham contribuído para a sua visão ateísta, afinal, para grande parte daqueles que não conhecem os fundamentos da lei de causa e efeito consolidada pelo Espiritismo, é desarrazoado conceber-se um Deus criador capaz de permitir as injustiças que campeiam no mundo. E, sem que nos coloquemos no centro das nossas inquietações, como entes geradores dos nossos próprios problemas, negar a Deus passa a ser uma questão de consequência ante as dores da vida, ao menos para alguns.
Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Diderot, Kant, Nietzche, Marx, dentre outros, viveram dissabores pessoais que provavelmente compuseram a sua visão de descrença em Deus e, assim como Freud, certamente se embriagaram no álcool do próprio conhecimento.
Eis aí mais um componente para o caldo ateísta: o orgulho dos intelectuais. E o jovem Freud nos deu subsídios interessantes sobre esse tema.
Por ocasião do seu ingresso na Universidade de Viena teve como preceptor um filósofo e ex-padre católico, de nome Franz Betano, que deixou a igreja por não concordar com o dogma da infalibilidade papal, promulgado por Pio IX em 1870. Escrevendo a um amigo, Freud afirmou: “É desnecessário dizer que sou um ateu somente por necessidade, e sou honesto o suficiente para confessar que sou incapaz de refutar os argumentos dele (Betano); entretanto, não tenho nenhuma intenção de me entregar tão rápida ou completamente”. (12)
O rigor intelectual leva grande parte dos homens de conhecimento a negar a existência de Deus, seja por orgulho em se presumir uma Inteligência superior, seja por autopreservação em não expor a própria fé e se submeter ao julgamento crítico de seus pares. Como Freud, parece que uma parte dos intelectuais defendia a inexistência de Deus, apenas para não fazerem parte daquilo que consideravam como crendices características dos incultos. Nos idos dos séculos dezoito e dezenove, não era de bom tom admitir-se a própria fé perante as comunidades doutas.
No último terço do século dezenove os Espíritos manifestaram-se sobre a existência de Deus e esclareceram que “Todo o efeito inteligente há de ter uma causa inteligente” (13), e que Deus não se mostra, afirma-se por suas obras (14), mas o doutos responderam ser isso mera presunção. Emmanuel lembrou que a “Ciência recorreu ao eixo imaginário da Terra para demonstrar o sistema do mundo (15), e Kardec assinalou que “a Ciência deduziu a existência dos planetas pelo conhecimento das leis que regem o movimento dos astros” (16), mas a intelectualidade quis demonstrações inequívocas, apesar de em muitas oportunidades basear suas manifestações em axiomas.
Apresentado o caldo da descrença, fiquemos com as seguras indicações de Emmanuel, segundo as quais “Não dispomos de outro recurso que não seja o do sentimento para a silenciosa ascensão à inteligência Divina.” (17) e “Não possuímos ainda a inteligência suscetível de refletir-lhe a grandeza, mas trazemos o coração capaz de sentir-Lhe o amor.” (18)
Por ora é o que nos é possível, até alcançarmos a condição de Espíritos puros, partilhando com o Cristo os imperativos da Lei e o conhecimento inesgotável sobre a dinâmica da criação de Deus.
Cleyton Franco
(1) O nome de batismo de Freud era Sigismund Scholmo
(2) Deus em questão, Armand M.Nicholi Jr, Prólogo.
(3), (4), (5) Ibidem
(6) Ibidem, cap. 2 – O Criador: Haverá uma inteligência além do Universo?
(7) Vinha de Luz, Francisco Cândido Xavier/Emmanuel, cap. 36- Facciosismo
(8) Assim falou Zaratustra, Friedrich W. Nietzsche. O prólogo de Zaratustra, 2
(9) A Gaia Ciência, Friedrich W. Nietzsche, seção 125, O louco.
(10) Deus em questão Armand M.Nicholi Jr, cap. 1 – Os protagonistas: a vida de Sigmund Freud e de C.S. Lewis
(11), (12) Ibidem
(13) A Gênese, Allan Kardec, cap. II, 3
(14) Ibidem, 6
(15) O Consolador, Francisco Cândido Xavier/Emmanuel, questão 18
(16) A Gênese, Allan Kardec, cap II, Deus
(17) Escrínios de luz, Francisco Cândido Xavier/Emmanuel, Ante a ideia de Deus.
(18) Fonte viva, Francisco Cândido Xavier/Emmanuel, 164 – Diante de Deus