Skip to main content

Antes de se tornar o apóstolo dos gentios, Saulo de Tarso[1] foi implacável perseguidor dos cristãos. Em sua caminhada pelo deserto, o doutor da lei foi agraciado com a aparição de Jesus. Ao chegar a Damasco, cego e extremamente debilitado, recebeu os cuidados de Ananias, a quem contou sobre o chamado que recebera: ele compreendera que seu Deus justo também poderia ser amoroso, que a alma é imortal e a encarnação é uma breve passagem. Foi quando seu cuidador indagou: e agora, por que te deténs? [2]

Esse fato se passou há dois mil anos. Hoje, nosso senso de justiça é mais apurado. Cada vez mais pessoas defendem a igualdade e buscam abolir toda forma de preconceito. Estamos mais politizados e dispostos a lutar pacificamente pelas causas nas quais acreditamos. Comparativamente, temos um mundo mais tolerante e justo do que antes.

Não obstante tal evolução, a maioria de nós ainda permanece no campo teórico. Utilizamos as redes sociais para expor e debater os pontos de vista, onde execramos a crueldade exigimos igualdade, e exaltamos os atos de bondade e caridade. Entretanto, o que fazemos para levar a cabo as transformações que consideramos justas? Ao que parece, nossa alma carece do mesmo questionamento feito a Paulo: por que nos detemos?

Frequentemente justificamos nossa inércia com falta de tempo, saúde ou recursos. Sim, vivemos tempos atribulados e nem sempre é possível estender a mão. Mas será que é exatamente assim?

Proponho ao caro leitor um exercício. Pergunte-se quantas vezes, no último mês, dedicou alguns minutos a fazer chegar o auxílio a quem necessita. Note que não definimos quem é esse necessitado, sendo que o auxílio pode ocorrer de inúmeras formas; vejamos alguns exemplos:

Ser gentil com um familiar com quem você convive e costuma ter atrito; ser cordial, sem julgar o merecimento alheio; ao sair de casa, levar consigo algum item que possa ser doado; ler para quem é ou está incapacitado de fazê-lo; atuar como ponto de coleta de doações para alguma instituição filantrópica; dedicar-se à aprovação de lei que traga benefício aos menos favorecidos; dar coaching a quem busca emprego; comprometer-se com a divulgação de campanhas beneficentes ou contribuir financeiramente com elas; ser um bom ouvinte para quem necessita de um ombro… a lista é vasta e não queremos priorizar, pois cada um faz o que pode e todo trabalho no bem é extensão da obra do Pai.

Perceba que costumamos dedicar muito tempo falando sobre o que aprendemos, mostrando que temos amor em nossos corações, mas tudo o que conseguimos é uma vitrine que nos faz “aparentar ser alguém que se dispõe ao auxílio”. Infelizmente, é raro que esse tempo dedicado à promoção das virtudes efetivamente faça chegar o socorro ao necessitado.

E quando a ocasião oportuniza o serviço, nos falta justamente tempo; de outra vez carecemos de saúde, ou recursos, ou paciência. Há aqueles a quem nada falta, mas dizem que não encontram a oportunidade e, ainda, os que não estendem a mão alegando ressentimento.

Todavia, não adianta aguardar que a dor ou a má sorte passem para começar a agir. Não há quem esteja livre das vicissitudes em um planeta de expiação e provas. Os desafios virão em ondas que precisamos aprender a surfar enquanto realizamos o trabalho redentor.

Também não faz sentido esperar por um momento oportuno. A oportunidade vive em nossos lares, na vizinhança, no trabalho, nas ruas, e há urgência em fazer chegar assistência: em um extremo, há os seres que sobrevivem, invisíveis, sem segurança ou saúde, que perecem no frio do asfalto, rogam pela sorte de uma refeição e pelo olhar do Estado. No outro, há as vítimas de abuso psicológico e de poder, do orgulho, da vaidade, dos vícios e, ainda, dívidas espirituais a serem resgatadas. Todos, sem discriminação, são possíveis focos de auxílio.

Não é sem razão que Kardec, em Obras Póstumas, disse que a caridade é “[…] a origem de todas as virtudes e base da ordem social […]”, ao que Fernando Lacerda, em Do País da Luz, V. 2, acrescenta: “ fazer justiça, é corrigir o defeito, é animar o tímido, é proteger o ousado, é exalçar a verdade, é enobrecer o humilde, é semear a paz, é pugnar pelo bem, é estabelecer a concórdia, é servir o amor, é esquecer agravos, é desculpar as faltas alheias e amar a Deus.”[3]

Não caiamos na crença vazia da meritocracia, onde “quem trabalha bem e bastante vence”. Se pararmos para refletir, o crescimento pelo mérito, como regra, só existe nas sociedades justas e igualitárias. Em um país como o Brasil, onde a maior parte da população não tem o mínimo para viver com dignidade de modo a ter um ponto de partida decentemente competitivo, essa acaba sendo apenas mais uma das desculpas para não estender a mão. Além disso, nosso discurso não se refere somente à doação material. Esse auxílio restaurador também precisa ser ofertado pela via da atenção, da tolerância, da empatia e, por vezes, do perdão.

Já é tempo de enxergarmos a caridade não como virtude teologal, nem como diretriz religiosa ou como condicionamento de fé, mas, pura e simplesmente, como norma de comportamento.[4]

Kardec nos ensina, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, que fora da caridade não há salvação. [5] O vocábulo “salvação” se refere a quem recebe e a quem doa. Sabe aquele amor que nos orgulhamos de sentir e que demonstramos nas redes sociais? Quando o colocamos em prática, ele se materializa na caridade.[6] Nesse instante, aproximamo-nos do Cristo, pois somos capazes de amar ao próximo como a nós mesmos.

Ao reconhecer o caminho, o apóstolo dos gentios não se deteve, redirecionou o rumo de sua vida, dedicou-se ativamente à reforma interior enquanto espargia o amor do Redentor pela palavra e pelo exemplo.

Já conhecemos bem a teoria, então, façamos como Paulo. É hora de darmos mais um passo em nossa evolução: precisamos exercitar a virtude que tão eficientemente divulgamos. Sejamos resilientes na adversidade e, cientes da urgência que nos cerca, acionemos nossa vontade para colocar o amor em prática.

E agora, por que te deténs?

Lila

[1] Conheça a trajetória completa do apóstolo Paulo lendo a obra: XAVIER, F.C., pelo Espírito Emmanuel. Paulo e Estevão.

[2] XAVIER, F.C., pelo Espírito Emmanuel. Caminho Verdade e Vida. Capítulo 147.

[3] Estudo Aprofundado da Doutrina Espírita, livro IV, módulo IV, roteiro 3. FEB.

[4] FRANCO, Divaldo P, pelo Espírito Joanna de Ângelis. Lampadário espírita.

[5] “Fora da caridade não há salvação” KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap XV.

[6] JACINTHO, Roque. Intimidade.

Leave a Reply