Naqueles tempos de primavera em cores e fragrâncias, o Sol gentil do meio dia ternamente acolhia as torres altivas e assimétricas da basílica de Nossa Senhora do Pilar, na bela e melancólica Zaragoza, imortalizada capital do reino de Aragão, onde os soberanos católicos, Isabel e Fernando, escreveram a História a partir do último quarto do século XV.
Foi lá que vicejaram a sombra enegrecida da inquisição e a chama luminescente do nascimento da Espanha, a potência marítima do porvir.
A atmosfera suave, típica do período em que as flores deitam império, adensava-se pelo vozerio e risadaria dos turistas desatentos aos depoimentos das vielas e alamedas circunvizinhas, testemunhas vivas de tantos acontecimentos que marcaram a trilha tortuosa da Humanidade.
Foi então que se ouviu os primeiros acordes de um órgão grandioso, em beleza e tamanho, magnetizando os ouvidos em uma atração irresistível ao interior da basílica.
O instrumento portentoso, de aproximados cinco séculos, punha à mostra camadas sobrepostas de teclas em preto e branco que se assemelhavam a uma parceria imaginária de ágatas e ônix, docilmente dedilhadas, não por um músico, pois quem entoava acordes naquele instrumento de Deus só poderia ser um gemólogo de ofício.
Em ato de profunda reverência ele se mostrava cônscio das preciosidades que os seus dedos longos e finos acariciavam, enquanto miríades de tubos de metal, alinhados como se fossem membros de um coral humano, decantavam notas musicais cuja profunda beleza seria capaz de tocar o coração do materialista mais convicto.
A atmosfera do local, permeada pela melodia extasiante, nada revelava sobre um suposto assassinato, testemunhado pelo mármore inerte da basílica cerca de seiscentos anos antes.
Humberto de Campos (1) narrou o episódio sem infundir cores demasiadas ao crime ocorrido no interior do templo de Zaragoza, pois que o seu real interesse era o de fotografar o psiquismo do assassinado após a ocorrência do evento.
Segundo o autor espiritual a vítima, aos olhos do mundo, chamava-se padre Domingos González. Tinha uma oratória cativante que dominava a todos, além de uma inteligência poderosa que o levou a ocupar posições de destaque na hierarquia da Igreja, tornando-se inquisidor-geral de Aragão no reinado dos reis católicos.
Em 1485, enquanto realizava os atos religiosos e comemorativos de determinada data consagrada, Domingos González foi assassinado dentro da catedral de Nossa Senhora do Pilar por judeus perseguidos pela inquisição que ele, González, hipoteticamente capitaneava.
Desencarnado, e aqui se encontra o foco da narrativa de Humberto de Campos, Domingos González prendeu-se à crosta terrestre, ainda incapaz de se despir dos afazeres que exercia enquanto trajava as vestes materiais.
Tempos depois, os companheiros de batina do desencarnado, familiares e simpatizantes, entenderam oportuno propor o reconhecimento da santidade de Domingos González na Terra, promovendo o processo que levaria à canonização do padre de Zaragoza, após o beneplácito papal.
Assim feito, os familiares e amigos de fé de Domingos González acomodaram-se nos assentos da fama do desencarnado. Deixaram o trabalho e se inebriaram com o fino verniz das homenagens mundanas, entendendo que por terem participado da vida e dos atos do santo, haveriam de obter, por merecimento, uma justa remuneração no mundo dos homens e um bom lugar resguardado no Céu.
Paralelamente, Domingos González, o santo desencarnado, passou a receber homenagens, petitórios e súplicas de fiéis e moradores de Zaragoza. Os pedidos guardavam, em linhas gerais, interesses subalternos os mais variados, mas o Espírito desajustado no orgulho e na vaidade esforçava-se em atender aos pleitos, mantendo-se cada vez mais preso às essências grosseiras que predominam na crosta terrestre.
Passado mais de um século preso à crosta, o santo Domingos González elevou o néctar do seu sentimento a Jesus, e em prece genuína de arrependimento de seus atos rogou pelo fim das homenagens, dos pedidos insensatos e do altar do mundo, através de uma oportunidade real de redenção. Queria novo ensejo à própria evolução, sem as luzes falsas da cena humana e o peso da notoriedade imerecida.
Foi atendido de plano e após breve preparação renasceu em uma senzala, submetendo-se, com resignação, à condição infra-humana de um simples escravo nos tristes idos do Brasil-Colônia.
Dede então, Domingos González continua reencarnando na Pátria do Cruzeiro sem ter logrado, ainda, posição mais elevada na ordem dos Espíritos de Deus. Porém, segundo o autor espiritual, guarda “instintivamente o mais terrível receio de chegar às esferas invisíveis com o título de santidade”.
Não foram encontrados registros históricos confirmando a existência e posição de Domingos González, tampouco o crime perpetrado no interior da basílica no ano indicado ou em período próximo.
É provável que Humberto de Campos tenha usado o fato, alterando ano, local e nome do personagem envolvido, evitando curiosidades e reconhecimentos que haveriam de subtrair da lição seus objetivos pedagógicos: a transgressão à Lei, os pedidos mundanos e o culto à personalidade, tríade que se revela nociva aos homens, conquanto ainda lhes integrem o íntimo em pulsos predominantes.
A transgressão à Lei decorre da imperfeição das criaturas humanas, encarnadas e desencarnadas, e não há comenda no mundo ou título religioso que isente os Seres das consequências dessa experiência que, ao final, tenciona a forja da individualidade iluminativa nas personalidades cheias de imperfeições e ainda incapazes no exercício do amor.
Porém, mesmo o erro que enseja a transgressão à Lei, guarda uma face pedagógica em seu bojo, mas é fundamental que o interessado movimente-se da esfera paralisante da culpa para o movimento libertador do remorso.
Culpa é o ressentimento das acusações e julgamentos que alguém recebe, sem se conscientizar da sua responsabilidade na causa de um evento determinado, enquanto o remorso é arrependimento que gera o movimento construtivo da reparação.
Domingos González, o santo, só acordou para o movimento libertador do remorso quando chorou sentido em arrependimento, endereçando a sua prece a Jesus.
Até então, e por quase um século, ocultou-se no ressentimento estéril, perseguido e julgado por aqueles que, na carne, perseguiu e julgou. Escorou-se no orgulho que se robustecia na sucessão de pleitos e homenagens ao grande vulto de Zaragoza, mas apenas quando abraçou a autocrítica de forma consciente e manifestou a sua fé, afastou-se dos petitórios e louvações infantis que se endereçam aos homens ditos santos, encontrando a paz consigo mesmo.
A sua culpa o reteve na ambiência densa do mundo, mas o seu remorso lhe concedeu as asas libertadoras da autorredenção.
O caso Domingos González é um alerta aos homens que obtiveram (obtêm), notoriedade e vulto nas inúmeras sociedades religiosas do mundo.
Apesar de imperfeitos, porque gravitam por atração e pertencimento a um mundo inferior, são exaltados por pares, adeptos e fiéis, não sendo incomum que, mesmo quando encarnados, recebam pedidos de intercessões e preces diretas, como se fossem a própria representação de Deus no mundo.
Desencarnados, então, tornam-se a expressão fiel da perfeição aos olhos simples daqueles que ainda não se dotaram dos filtros espirituais, e mesmo que recusem as louvações por apego à verdade, atitude que Domingos González não adotou, são guindados à posição santificante e adorados à semelhança do bezerro de ouro.
Os verdadeiros expoentes e luminares espirituais, encontrados nas diversas seitas e religiões existentes, têm a exata consciência da necessidade progressiva da despersonalização como forma de realização do Ser, assim como não lhes escapa o fato de que a louvação e o culto que lhes são prestados decorrem, muito menos de um reconhecimento real e muito mais das fragilidades íntimas dos peticionários, que ainda reclamam as figuras e os símbolos como forma de se integrarem, pela alma, na sublime mecânica de Deus.
Porém, o alerta de Humberto de Campos reporta-se aos incontáveis Domingos González que se notabilizam nos núcleos religiosos de todos os matizes espalhados pelo mundo, inclusive no âmbito espírita, encantados pelo sibilo dos elogios, das reverências e das homenagens daqueles que só lhes constatam a face aparente, desconhecendo o que se passa no âmago das suas almas.
Inebriados pelo quase nada que representam, deixam-se tomar pelo orgulho com o qual roteirizam os seus passos na matéria, pensando preparar a própria canonização como se nada soubessem a respeito das advertências do Cristo de Deus sobre os falsos profetas (Mateus, VII, 15-20).
Por eles, e não para eles, oferecemos as nossas preces carinhosas.
Cleyton Franco
(1) – Reportagens de além-túmulo, FCX/Humberto de Campos, Cap. I, Amarguras de um Santo.