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Aquele, o da Judeia, era um deserto diferente dos que habitualmente nos ferem a retina em imagens fotográficas. Composto de “basalto calcinado pelo Sol ardente ou de rocha calcária em tonalidades pérola e marrom”1 , não permite que a vida ali faça morada e nem habite a alegria. Por onde se estenda o olhar daquele que porventura queira penetrá-lo, verá somente aridez e vazio, onde ventos mornos e violentos circulam desespero e morte.

Esse foi o lugar escolhido pelo Cristo de Deus para mergulhar no silêncio, antes de iniciar o seu ministério.

O que para os homens possa parecer tétrico, para Ele representava a pauta onde seriam inseridas as notas melódicas do Pensamento Divino. No silêncio e na mais profunda solidão, o Mestre entrava em conexão com Deus, o Pai, que O enviara para a mais sublime missão entre as criaturas terrestres.

Era preciso que se abstivesse de total proximidade com os seres e as coisas à sua volta, para que a comunhão com o Todo Poderoso fosse perfeita.

De se notar que o símbolo do deserto sempre foi escolhido pelos que necessitavam de Deus; há como que uma necessidade de isolamento, de modo a se adquirir energia necessária para suportar os embates da vida e do relacionamento humano. O encontro com Deus é fator primordial para que se obtenha êxito nesse propósito.

“Jesus buscou o deserto para inebriar-se de Vida, e adaptado ao silêncio das pedras, suportar o vozerio da ignorância humana vestida de vaidade cultural e presunção da exegese religiosa”2 .

Vemos aí, caro leitor, a relevância do silêncio nos grandes empreendimentos da alma. A quietude, acionando os canais receptores de energias transcendentais, permite ao Espírito o vínculo com o Superior, o que está acima, estabelecendo a completude entre a criatura e seu Criador.

Conhecendo o grau de dificuldades que teria de enfrentar, o Mestre adentra o deserto e na solidão, cria os alicerces que serão implantados no basalto duro dos corações…

Embora fosse também, o de Dan, um deserto, seu aspecto físico diferenciava-se daquele que o Cristo palmilhara. Seu “lençol de areia mais parecia um oceano parado”3 , que no entardecer convidava à meditação. O moço que para lá se dirigira chamava-se Saulo de Tarso, o mesmo que mais tarde seria conhecido como Paulo de Tarso, o apóstolo dos gentios, propagador do Cristianismo.

Façamos uma breve digressão.

Ostentando o nome Saulo, doutor da Lei em Israel, dedicou-se a combater as ideias cristãs, assim como a Jesus. Não hesitou em comandar homens para extermínio dos simpatizantes da Boa Nova. Fora ele o mandante do apedrejamento de Estêvão, que se constituiu primeiro mártir cristão. Na sanha voraz e incontrolada para derrotar aqueles novos conceitos que cresciam vertiginosamente entre as gentes mais simples, foi pessoalmente a Damasco acompanhado de serviçais, de modo a encontrar Ananias, homem que liderava um grupo cristão, e matá-lo. Todavia, às portas da cidade, deu-se o grande encontro entre ele e o Cristo. O leitor interessado poderá acompanhar a saga deste personagem em “Paulo e Estêvão” da autoria espiritual de Emmanuel, psicografia de Francisco Cândido Xavier.

Após o encontro sublime, tudo mudou na vida desse moço.

Esclarecido e orientado por Ananias, aquele mesmo a quem pretendia matar, procurou o deserto.

Observemos a diferença: o Divino Modelo desejava um encontro com Deus para nessa comunhão espiritual consolidar o preparo de sua grande missão na Terra. Repletava-se da Energia Divina, banhava-se de Luz.

Saulo, ao invés, buscava um encontro consigo mesmo; rememorava seus feitos, arrependendo-se amargamente dos atos praticados. Convertera-se ao Cristianismo, mas necessitava expurgar, ali, no deserto, seu remorso, suas angústias, sua insensatez e adquirir forças para a luta que iria empreender. A primeira batalha era vencer a si mesmo. Na solidão daquele imenso areal, rememorava as palavras de Ananias: “Antes de tudo, procura ajuntar as sementes no seu mealheiro particular, para que o esforço seja produtivo. Quando hajas sofrido mais, terás a compreensão dos homens e das coisas. Só a dor nos ensina a ser humanos”4 .

O tempo no deserto auxiliou-o na compreensão da grande tarefa que tinha pela frente. O silêncio e a solitude foram pouco a pouco fortalecendo seu Espírito, que, nas noites estreladas, assimilava os conselhos e diretrizes vindos do Alto, que o acompanhariam na longa jornada entre os homens incultos e distantes de Deus.

Reportemo-nos agora, a desertos diferentes. Encontramo-los no mundo todo. Não estamos nos referindo aos geograficamente localizados, onde se pode ouvir a música do silêncio e a voz de Deus, mas daqueles que vigoram na essência do próprio Ser. Criaturas existem que são áridas no trato, na convivência, na descrença, nos ideais. Prontas na acusação, não se permitem renovar. Representam perigo no meio em que vivem, porque, pessimistas, contagiam os incautos e simplórios. É preciso cuidado para não se deixar intoxicar pelos miasmas que exalam.

Se nos desertos da Natureza o ambiente é propício para reflexão, nas pessoas-deserto vigora aridez de morte, silêncio constrangedor, reações contra a vida.

Analisemos o que representamos em nosso meio social. Ofertemos ao próximo, estímulo, compaixão, auxílio, boa convivência. É imperioso o iluminar da consciência de modo a compreender o objetivo da existência. Enquanto isso não acontecer, permaneceremos na rebeldia, no egoísmo, verdadeiros desertos interiores, paralizando-nos os passos da ascensão.

 

Yvone

 

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(1) “Até o fim dos tempos” – Amélia Rodrigues / Divaldo P. Franco – pág.49 – 3ª Ed.

(2) Idem – pág. 50

(3) Paulo e Estêvão – Emmanuel / F.C.Xavier – cap. 11 – pág. 267 – 4ª Ed. Especial

(4) Idem – pág. 243

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