O transplante de órgãos sempre foi uma aspiração da Ciência em busca do bem estar da Humanidade. Em outubro de 1967, na Cidade do Cabo, África do Sul, deu-se com sucesso o primeiro transplante de coração, realizado pela equipe do Dr. Cristian Barnard, marco histórico para a evolução desse seguimento, que passou a contar com investimentos em tecnologia não só quanto aos procedimentos, mas em especial na luta contra as naturais rejeições. O leque de transplante foi-se abrindo a tal ponto, que hoje em dia todos os órgãos saudáveis são passíveis de aproveitamento.
Mas, se de um lado a Ciência evoluiu, de outro persiste a resistência de potenciais doadores e de familiares em anuir na retirada de seus órgãos. Uns chegaram a pensar que a personalidade do receptor do órgão transplantado viria a adotar a do doador; outros temiam que o Espírito do doador ficasse privado desse órgão no Plano Espiritual. Há ainda a incidência de familiares que nutrem o tétrico e irracional apego ao cadáver, como se ali permanecesse a individualidade espiritual com a qual conviveram.
A Doutrina Espírita cuidou de dissipar tais temores ao explicar que as células do corpo físico são governadas pelas leis da Natureza, sob o influxo do Espírito, por meio do perispírito de sorte que, retirado o órgão de determinado organismo, ele perde o impulso espiritual que o governa, passando a ser dependente daquele sob cujo domínio passou a servir. Por outro lado, os órgãos perispiríticos são mais sutis, de sorte que, em princípio, não se confundem com os da matéria densa.
Recorda-se a lição de André Luiz ([i]): “…a alma que desencarna, findo o processo histolítico das células que lhe constituíam o carro biológico, e fortificado o campo mental em que se lhe enovelaram os novos anseios e as novas disposições, logra desvencilhar-se, mecanicamente, dos órgãos físicos, agora imprestáveis, realizando, por avançado automatismo, o trabalho histogenético pelo qual desliga as células sutis do seu veículo espiritual dos remanescentes celulares do veículo físico, arrojado à queda irreversível, agindo agora com a eficiência e a segurança que as longas e reiteradas recapitulações lhe conferiram”. Mais adiante: “Decerto que na esfera nova de ação, a que se vê arrebatado pela morte, encontra a matéria conhecida no mundo, em nova escala vibratória ([ii]).
Outras pessoas são refratárias à doação por temerem a morte prematura de seus entes queridos por agentes inescrupulosos ou imprudentes. Essa hipótese é praticamente impossível de acontecer, diante da legislação vigente. No Brasil vige norma exigindo a autorização expressa de familiares, a presença de no mínimo dois médicos para atestarem a morte cerebral, condição indispensável para viabilizar a extração de órgãos, e ainda faculta à família indicar médico de sua confiança para acompanhar o procedimento. Há entidades governamentais capacitadas a identificar as ocorrências de morte encefálica e destinar tecidos, partes e órgãos retirados (SNT) e Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDOS), responsável pela inscrição de potenciais receptores, encaminhamento e transporte dos órgãos.
A questão central orbita na faculdade que as pessoas têm de doar ou não os órgãos de um corpo de parente que acaba de falecer. Com certeza, a entrega desse material inerte à alimentação de vermes não é uma boa destinação, quando se tem a opção menos egoística, mais racional e humanitária de fazer a doação dos órgãos aproveitáveis em benefício daqueles receptores que se encontram na fila. Mas essa lógica perde terreno para o elemento surpresa. Com o exício do ente querido, a família entra em pânico, esquecendo-se do sofrimento de quem aguarda por um órgão que poderia prolongar a vida e o bem estar. Por isso que melhor seria se a destinação ficasse ao arbítrio pessoal e não dos familiares. Primeiro, porque o indivíduo é quem sabe se está preparado ou não a se desfazer de seus próprios órgãos, enterrá-los ou deixa-los arder na cremação. Segundo, porque os familiares despreparados, deseducados a esse respeito, podem, segundo a lei vigente, tomar decisão contrária à do ente moral titular dos despojos, desapontando-o quando despertado do outro lado da vida.
Insta esclarecer que o requisito morte encefálica não se confunde com o coma profundo. Naquele, o corpo já não responderá e sua falência é iminente, por conta da cessação das funções do encéfalo; neste, o indivíduo simplesmente perde sua capacidade de vigília. O avanço da Medicina e a aparelhagem moderna não deixam margem a erros. O estado catalético que acometeu Lázaro e permitiu seu sepultamento constitui fenômeno do passado.
Para o sucesso de um transplante é indispensável a observância de prazos em que o órgão retirado permanece fora do corpo de origem. Trata-se, portanto, de situação de emergência. Logo, não admite protelação. A família deve decidir de pronto, o que geralmente é difícil. Em virtude disso, é recomendável que ela se prepare espiritual e moralmente para essa ocasião, seja respeitando a vontade do doador, quando em vida, seja observando os princípios cristãos cultivados ao longo da jornada. Ato de caridade resultante da cristificação. Nenhum Espírito sofrerá desconforto físico ou psíquico resultante da doação dos órgãos de seu extinto corpo denso. Sofrerá, no entanto, reflexos dolorosos quando haja mutilação enquanto encarnado esteja, hipótese da qual não se cuidará neste estudo.
Enquanto a Ciência não desenvolve pesquisas a ponto de cultivar células para formar órgãos humanos aptos a substituir os desgastados, alternativa não resta senão a de se incrementar a cultura da doação, aperfeiçoando-se o sistema vigente de coleta, seleção e distribuição entre os pacientes, de molde a minorar o sofrimento de quem esteja passando pela agudeza da falência de seus próprios órgãos. Paralelamente, é necessária a efetiva conscientização do Ser humano sobre a imortalidade da alma e a desnecessidade dos órgãos físicos para que o Espírito se manifeste hígido no Plano que lhe é próprio e de origem. Importa dominar o medo da morte e a incerteza sobre a imortalidade do Espírito. Questão de cultura e de educação – ou falta de ambas. Precisamos nos educar para a morte, até mesmo para que saibamos viver bem, como se extrai do seguinte ensinamento: “Preparar para a vida é educar para a morte. Porque a vida é uma espera constante da morte. Todos sabemos que temos de morrer e que a morte pode sobrevir a qualquer instante. Essa certeza absoluta e irrevogável não pode ser colocada à margem da vida”. “A educação para a morte não é nenhuma forma de preparação religiosa para a conquista do Céu. É um processo educacional que tende a ajustar os educandos à realidade da vida, que não consiste apenas no viver, mas também no existir e no transcender”([iii]).
Doação de órgãos para transplante é ato de amor ao próximo.
Marcus Vinicius
Fonte: Doação de órgãos e transplantes – Wlademir Lisso – FEB – 4ª edição.
[i] Evolução em dois mundos – pelo Esp. André Luiz – Chico Xavier e Waldo Vieira – FEB – 14ª Ed. pág. 89[ii] Idem, ibidem, pág. 96
[iii] Educação para a morte – Herculano Pires, Ed. Correio Fraterno do ABC, São Bernardo do Campo, 1ª Ed., 1984 –págs. 19 e 41.
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