O Mestre e Salvador age em nós na medida em que O compreendemos e passamos a seguir os Seus sublimes ensinamentos. A busca pela verdadeira religiosidade acima das religiões dogmáticas e a cimentação de uma fé raciocinada são os requisitos básicos para essa iniciação reformativa. Não obstante, no exercício da humildade que a todos convém, haveremos de encontrar – ressalvadas raríssimas exceções – comportamentos que nos traem os sentimentos nobres e as convicções já entronizadas. Reportemo-nos ao lúcido debate provocado pelo instrutor espiritual Emmanuel sobre a passagem evangélica em que um endemoninhado se identificava perante Jesus como sendo portador de uma Legião (Marcos 5:9), para nos conduzir à reflexão. Segundo ele, somos, diante de Jesus, a legião dos erros que já cometemos no pretérito e dos erros que cultivamos no presente, dos erros que assimilamos e dos erros que aprovamos para nos acomodarmos às situações que nos favoreçam os interesses de superfície. ([i])
Com efeito, carregamos fontes de energias negativas que nos influenciam constantemente. São os componentes de nossa LEGIÃO, que precisamos eliminar para melhor seguir nossos próprios caminhos evolutivos. Quais são eles? São as contradições que detectamos entre o que gostaríamos de ser em virtude do quanto já assimilamos dos ensinamentos do Cristo e o que nos impede o comportamento adequado. Exemplificativamente: acreditamos na força da verdade, mas ainda damos espaço à mentira; ensinamos beneficência, mas ainda somos egoístas; advogamos brandura quando se trata de assuntos alheios, mas ainda nos encolerizamos diante de alguém que nos causa prejuízo; pelejamos pela paz nos lares vizinhos, mas não garantimos a tranquilidade em nossa própria casa.
Bem a propósito, recordamos o histórico conflito existencial que envolveu a personalidade do Papa Urbano III, em plena campanha das Cruzadas ([ii]), em que a cúpula da Igreja, em nome do Cristo, perseguia os hereges, sem piedade, tudo destruindo, assaltando, praticando carnificina e corrupção. Note-se que o Evangelho era e continua sendo leitura obrigatória na formação de todo sacerdote.
As Cruzadas foram instituídas em outubro de 1095, no Concílio de Clermont, na França, pelo Papa Urbano II, a pretexto de defender o Santo Sepulcro dos muçulmanos. Perdurou por largo período da Idade Média sob a denominação de Guerra Santa e se espalhou mundo afora. Urbano III deu cumprimento a esse desastroso propósito até o momento em que despertou para o divino ensinamento crístico sobre o “Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam. Bendizei aos que vos maldizem, orai pelos que vos caluniam. Ao que vos bater numa face, oferecei também a outra, e ao que tirar a vossa capa, deixai levar também a túnica…” (Lucas, 6.27/30). Reconhecia a incoerência: por onde passava a bandeira das Cruzadas, em nome da Igreja e do Cristo, implantava-se dor e destruição; contudo, rogava o Clero ao mesmo Filho de Deus inspiração para o amor ao próximo. Mas não havia como fazer cessar essa brutalidade, ao menos naquela época. O segundo escalão não admitiria uma ordem contrária, ainda que emanada do próprio Pontífice. Menos ainda os seguidores inflamados pelo ódio que lhes foi implantado e cegos para a verdadeira doutrina do Bem, prisioneiros do fanatismo. Politicamente, Urbano III não tinha saída, mas gostaria de pôr em prática os ensinamentos do Cristo, que eram todos de amor e paz. Qual o dever de quem já conhece a Verdade? O que fazer?
Simplesmente Urbano III curvou-se ao comando de sua consciência e mudou radicalmente sua postura doutrinária. Se não podia mandar suspender todas as lutas e expedir um decreto de perdão coletivo a todos os inimigos, pelo menos externaria sua nova posição. Por isso, foi taxado de louco, embora plenamente lúcido e findou por ser envenenado para que suas novas ideias não prejudicassem o plano das Cruzadas que ganharam força no sucessor Gregório VIII. Mas Urbano III tornara-se um novo homem, conquistando ainda quando encarnado, os caminhos que o conduziram à luz da redenção, sem as legiões de tormentos íntimos. Estando no mundo espiritual, revelou sua preocupação com os que se mantiveram na retaguarda, prisioneiros de conceitos distorcidos da Verdade, mas findou por receber a devida orientação sobre as oportunidades divinas que são dispensadas de forma igualitária a todos os filhos de Deus, recomendando que se aguarde o despertar de cada um, segundo o momento que lhes é próprio.
Nós, aprendizes de hoje, não enfrentamos a tortura espiritual do Sumo Sacerdote protagonista dessa história, mas temos nossa legião de tormentos, representados pelos conceitos velhos que nos foram transmitidos, os que assimilamos e com os quais nos compadecemos, em tudo conflitantes com os ensinamentos hauridos do Evangelho do Senhor. Como devemos fazer? Primeiro, reconhecer sua existência; depois, buscar a luz do Evangelho e lutar ferreamente para deixar de ser a personalidade multiface que temos sido, para nos tornarmos a individualidade cristificada que devemos ser.
Marcus Vinicius
i PALAVRAS DE VIDA ETERNA – pelo Esp. Emmanuel – psicografia de Chico Xavier – Edição CEC, nº. 167.
Ii FRANCISCO DE ASSIS – pelo Esp. Miramez – médium João Nunes Maia – Editora Fonte Viva, 27ª Edição, Cap. 3, págs. 66 a 74.