Certa noite, após uma de suas peregrinações, Jesus e seus discípulos foram recebidos à mesa de fariseus[1]. O pequeno grupo de visitantes não lavou as mãos antes da refeição, fato que incomodou os anfitriões, pois, há dois mil anos, bem mais do que premissa de higiene, essa prática era tradição religiosa inexcusável.
Ao ser questionado quanto ao fato de comerem o pão sem procederem ao imperioso asseio, O Cristo respondeu: “tudo o que entra pela boca desce ao ventre, e se lança depois num lugar escuso. Mas as coisas que saem da boca vêm do coração, e estas são as que fazem o homem imundo; porque do coração é que saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias”.[2]
Aquele povo, apegado às tradições, praticava os protocolos religiosos com zelo, mas não se dava conta de que, com o passar do tempo, a prática dos sagrados mandamentos foi sendo substituída por rituais estabelecidos pelos homens. Acreditava que agradava a Deus ao dedicar-se à veneração através de atos litúrgicos, e que isso compensaria os seus pecados. Ocupado em exibir a sua adoração, permanecia cego para a sua estagnação moral.[3]
Pois que O Nazareno desceu à Terra para mostrar nova forma de louvar ao Senhor. Percorreu a Galileia e a Judeia ensinando, pelo exemplo, regras de conduta voltadas para a caridade, a tolerância e o perdão, atitudes fundamentadas, não em ritos, mas no amor ao próximo e a Deus.
Inúmeros O seguiram e trabalharam para semear Seus ensinamentos, que há dois milênios vêm sendo multiplicados.
Todavia, ainda hoje, o Homem vive em conflito consigo mesmo, dividido entre a busca pela felicidade espiritual e a satisfação terrena momentânea. Enquanto uma exige trabalho e persistência, e chegará no prazo da perfectibilidade humana; a outra, fácil e instantânea, oculta as armadilhas que limitam e retardam a própria evolução. Incompatíveis entre si, a perfeição e o imediatismo são a dicotomia da luta interior constante que trava o incapaz de olhar para além da mortalidade de seu corpo.
Então, como faziam os fariseus, frequenta um templo espiritual, ouve os ensinamentos expostos no Evangelho e crê que a assiduidade semanal fará de si uma pessoa melhor, ainda que não coloque em prática as orientações recebidas. Oralmente, repete o que ouviu e julga as atitudes alheias, mas não percebe as próprias faltas. Aguarda ad aeternum[4] o “momento propício” para começar a praticar o bem, como se não vivesse oportunidades diárias para perdoar, para ser indulgente e caridoso em seu próprio lar. Não compreende que apenas terá mérito quando aplicar os aprendizados para julgar e mudar somente a si mesmo, quando passar da palavra à ação.
“Não percas tempo na expectativa inútil, pois todo aquele que sente, e age com o Cristo, vive satisfeito e procura melhorar-se, melhorando a vida com aquilo que tem.”[5]
Basta de discursos vazios e de desculpismo[6]! Para agir conforme os ensinamentos dO Cristo, é imprescindível ser capaz de olhar para o próximo com amor. Só consegue ver o outro de forma afetuosa, aquele que para de julgar o comportamento alheio e, antes, se reconhece necessitado de aperfeiçoamento; entende que o prazer proveniente da matéria é transitório; sabe que a notoriedade exigida pelo orgulho é fugaz; o egoísmo é causa de solidão; a vaidade é artífice de uma vida de ilusões; a violência é a covardia que oprime. É necessário parar de alimentar tudo aquilo o que aparenta trazer satisfação imediata, que não desperta o desejo de ser melhor para o próximo e, pelo contrário, sufoca o potencial de amor que o Ser Humano é capaz de produzir.
Através de Chico Xavier, o Espírito Emmanuel ensina que, embora a vontade humana seja o motor da transformação, o sentimento é o combustível necessário para inspirar o cérebro e plasmar as ações.3 Portanto, além de distanciar-se das interferências que levam à prática de atitudes centradas no ego, é recomendável buscar locais e situações que estimulem bons sentimentos e emoções agradáveis, visto que favorecem o desejo de fazer o bem e criam oportunidades para praticar boas ações.
“É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a sua prática.”[7]
Da mesma forma, também é importante estar atento aos pequenos momentos do dia-a-dia, quando o Ser Humano mais reage do que age, inconsciente de que suas respostas ao costumaz são mero reflexo e não produto da sua vontade. Se, rotineiramente, parar para ponderar as suas reações, e o quanto pode fazer melhor do que antes fez, certamente passará a se vigiar para manter-se mais consciente e no controle das próprias atitudes [8].
É urgente dar início ao processo que transforma a palavra em ação. O Cristo não pediu que seus seguidores pregassem, mas que vivessem por Seus exemplos. Vigiar o tom de voz; escolher cuidadosamente as palavras; considerar o seu benefício antes de proferi-las; oferecer um sorriso sempre que possível; ouvir atentamente ao outro; agir procurando manter a tranquilidade no ambiente; fazer o bem sem expectativa de retorno; ser gentil e atencioso com todos indistintamente; buscar entender as limitações alheias; ser tolerante e ajudar quando possível; perdoar aquele que ofende, ciente de que, quem erra, o faz por não entender; fazer ao próximo de fato o que deseja para si…
Muitos desses pequenos exemplos de caridade podem ser praticados imediatamente, em casa, no trabalho e nas ruas, sem a necessidade de qualquer treino, preparação ou dedicação de tempo adicional, bastando a vigília das próprias atitudes, evitando as reações inconscientes, pois trata-se tão somente de mudança de conduta. Vigiar um comportamento por mês, até que se torne hábito. Por que não? Um esforço pequeno comparado ao encurtamento do trajeto para a felicidade espiritual.
Quando os nossos atos forem o espelho das nossas palavras e refletirem os ensinamentos do Filho, sentiremos a plenitude do amor que O Pai deseja para nós.
Lila.
[1] Fariseu: membro de grupo religioso judaico, surgido no século II a.C., que vivia na estrita observância das escrituras religiosas e da tradição oral.
[2] Mateus (15: 1-20)
[3] Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo 8, item 8 ao 10 e capítulo 18, item 10 ao 13.
[4] Expressão em latim que significa “para sempre”, “eternamente”.
[5] Xavier, F. Cândido – pelo espírito Emmanuel. Palavras de Vida Eterna, capítulo 85.
[6] Xavier, F. Cândido – pelo espírito Emmanuel. Palavras de Vida Eterna, capítulo 128.
[7] Paulo Freire (1921 – 1997) – Educador, Pedagogo e Filósofo.
[8] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, pergunta 919a.